legarcia 01/05/2024
A herança da vida sem plumas
?O cão sem plumas? coloca João Cabral de Melo Neto ao patamar mais elevado na literatura brasileira. E depois da leitura, é impossível não dar todos os créditos a esse autor que com extrema qualidade técnica e narrativa literária refletiu um dos maiores males do nosso país.
Evocando imagens e elementos intimamente ligados à vida nordestina, o autor constroi esse poema o qual expõe a triste realidade da maioria das pessoas que nascem com a herança do trabalhador que não vai ascender. Árvores que geram frutos inférteis porque até mesmo suas raízes estão fundas nesse solo pobre.
É importante ressaltar como o autor utiliza-se de uma generalização, quase como se tivesse falando da vida de Severino. E penso que essa escolha técnica confere toda uma profundidade e colabora para o efeito do texto nos leitores, uma vez que provoca agonia, frustração e indigniação ao narrar como milhões de brasileiros vivem sem pespectiva e em vulnerabilidade graças a uma lógica social que é construída por pilares históricos e mecanismos fortes para manutenção da desigualdade.
São milhões de pessoas que são como um cão sem plumas, que nada sabem da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, mas que sabem do caranguejos, do lodo e da ferrugem. Milhões de pessoas que trabalham exaustos, sustentando a sociedade, mas não podem usurfruir dos bens que contribuem para serem produzidos, nem de um momento de tranquilidade e lazer com os seus.
Isso contrasta cruelmente com os outros que vão vestidos de seda. O poema evidencia essa dicotomia em diversos momentos, ressaltando como a vida das Pessoas Cães Sem Plumasé mais espessa, mais sofrida, com mais luta.
Tenho certeza que essa seria uma indicação certeira para quem quisesse explorar literariamente a desigualdade de nossa sociedade. É impressionante o efeito emocional da obra de João Cabral de Melo Neto. Com certeza é um excelente objeto de reflexão!