Paixão de Leitora 21/07/2015
A segunda pátria por Paixão de Leitora
Amantes de história, como eu, são àvidos pesquisadores e curiosos sobre o que de fato foi vivido durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, sempre fiquei restrita às revistas e aulas de história já que o Brasil quase não se envolveu com o fato e acabamos sem memórias da época por aqui.
Por esse sede de conhecer, sempre me perguntava o que teria acontecido se Hitler tivesse alcançado o Brasil.
Como se tivesse escutado minha questão, Miguel Sanches Neto construiu um Brasil cada vez mais dominado pelo nazismo rumo ao estabelecimento de uma Segunda Alemanha com a eliminação do nosso povo misturado e "impuro" em prol da raça ariana, superior por ser pura. Mais além, o autor criou um romance que traz à tona a segregação racial e explora o sofrimento de crianças, adultos e idosos que se tornam novamente subordinados à forças maiores, ainda que tão depois da abolição da escravidão.
Imaginam como fiquei louca para ler esse livro né ???
Conheci a história na Turnê da Intrínseca e não sosseguei até tê-lo em mãos.
Sei que a resenha de hoje ficou um pouco extensa, mas não fiquem com preguiça! Prometo que não vão se arrepender, precisava expressar todos os sentimentos que esse livro me trouxe e foi muito difícil escolher poucos quotes de tantos maravilhosos.
O livro começa contando a história de Adolpho Ventura, um negro que, apesar de origem pobre, estudou em escolas alemães e se formou em engenharia no Rio de Janeiro, voltando para Blumenau apenas por amor à cidade natal. Fluente em alemão e apaixonado pela literatura, se sente tão pertencente à Grande Alemanha quanto os arianos mais puros. No entanto, a Alemanha tão amada logo no início do livro já o trai. Com um bebê fruto de uma mistura de raças para cuidar, Adolpho se depara com a face mais dura do nazismo perdendo seu cargo na prefeitura, sua casa, seus livros e, após entregar seu filho aos pais, a liberdade também.
" Antes de sair à rua, Ventura sempre passava um pouco de pó de arroz no rosto, para esmaecê-lo. Ele se queria o mais branco possível, para destoar menos, e chegara mesmo a se imaginar ariano. Sua alma eram os livros, a responsabilidade, o espírito de organização, a realização pelo trabalho. Figurava, contudo, como a encarnação do mal, colocando em risco a comunidade."
"Quando não se tem nada e a carência é grande, o pouco é excesso."
Enquanto isso conhecemos Hertha, a jovem descendente de alemães mais cobiçada da região. Ciente de seu poder de sedução, possui um desejo quase insano de explorar a todo momento os prazeres que é capaz de provocar. É nesse contexto que é convidada (sem opção de recusa, na verdade) para uma viagem a Porto Alegre a fim de mostrar seus talentos para um desconhecido. A viagem que foi encarada como aventura pela jovem no início, trouxe consequências inesperadas que mudariam sua vida e a concepção sobre o tal nazismo, antes até considerado simpático. A partir desse momento, os luxos e a vaidade não têm mais espaço, Hertha precisa se preocupar em manter os que amam e a si mesma vivos.
Paralelamente, acompanhamos também o trajeto de medo e insegurança dos pais de Adolpho que, com o neto nas mãos, percorrem a estrada a pé até uma cidade mais próxima em busca de um trem que os leve para fora do sul do Brasil. O drama é enorme, o bebê sugando açúcar e vinho dos dedos da avó para se manter em silêncio e os três empacotados em uma caixa de madeira seguindo viagem para o Rio de Janeiro.
"Agora descendo o morro naquela madrugada, quase ninguém na rua, eles pareciam Maria e José em fuga com o menino Jesus. Um casal negro e velho com uma criancinha mulata."
A narrativa construída em capítulos curtos, carrega um clima pesado e tenso constantemente. Os sentimentos mais profundos são despertados, pois é impossível não se revoltar com a violência, perseguição e a destruição de qualquer resto de dignidade e integridade humana dos negros e mestiços.
Acho que o sentimento mais assustador é o reconhecimento. Me assustei porque reconheci na história uma concretização do preconceito tão presente entre nós ainda nos dias de hoje, pelos próprios negros e, como nos casos mais recentes, pelos nordestinos.
Assim como a ofensa a um alemão envolve toda a nação alemã, a dor que "os nossos" sentiam no decorrer das páginas mobiliza, revolta e insulta todos os que estão lendo esse sofrimento.
O livro explora bem a transição entre uma vida de sucesso e a escravidão selvagem e é absurdo acompanhar cada passo da adaptação e redenção de Adolpho e os demais presos. A descrição violenta dos fatos não possui eufemismos, a intenção é justamente incomodar o leitor e convidá-lo a sair de sua zona de conforto.
Me senti profundamente ligada á todos os personagens, não somente por um sentimento de compaixão e solidariedade, mas principalmente de admiração. Confesso que criei um preconceito contra Hertha no inicinho, mas conforme fui conhecendo sua ingenuidade de menina e percebendo a atitude de mulher que exibia juntamente com a coragem para enfrentar tudo, fiquei boquiaberta com a admiração que ela conseguiu despertar em mim. A inteligência de Adolpho aliada à sua passividade diante de tantas perdas e humilhações também é surpreendente, incrível especular sobre como alguém no seu limite da sobrevivência consegue raciocinar, liderar e ser paciente.
A descrição do amor que move a vida de Hertha e Adolpho é tão simples e sutil que dá até um aperto no coração. Quantos casos de amor entre negros e arianos seriam sufocados se a ficção tivesse sido real ?
"Vejam a natureza. Cada animal só se une com outro de sua espécie. Se queremos belos filhotes de um pastor-alemão, unimos os dois exemplares mais puros. É esse o istinto que prevalece na natureza e que fez surgirem as grandes espécies. Assim, é preciso levantar uma barreira contra cada raça e buscar contribuir com esse processo natural de refinamento, evitando a rassenschante, o crime de diluir o sangue ariano entre os não arianos." - página 34
Ler esse livro foi uma experiência super diferente pra mim. Não só pelo fato de abordar crises no meu próprio país, mas pelo nível de estudo extremamente bem empregado pelo autor que tornou essa ficção tão próxima de nós e passível de ter acontecido. Além disso, livros desse assunto geralmente trazem uma carga tão pesada que algumas vezes eu evito, mas em A Segunda Pátria o autor conseguiu dar aquele gostinho de querer devorar tudo e transformou a leitura em mais prazerosa.
O questionamento do "E se ?" nos leva a inúmeras conclusões, principalmente se seria possível um país tão acolhedor de todos os povos sofrer uma mudança drástica e se colocar contra "os seus" em prol de um Hitler aparentemente sábio.
Para os que amam a combinação entre romance e história com doses altas de aventura e realidade é o livro perfeito.
É uma delícia e um prazer absurdo poder apreciar um livro tão bem escrito por um autor nacional.
"Um leitor é alguém que carrega clandestinamente as palavras que leu. Os livros são apenas réplicas materiais, réplicas menores, bem menores do que a presença interior das palavras, uma presença que às vezes não se anuncia. Só quem se dedicou apaixonadamente a um livro sabe que ele lhe pertencerá para sempre, mesmo que não possa recordá-lo."
Espero que tenham gostado e que possam ler o mais rápido possível esse livro sensacional!
BeiJU!
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