Cristina Henriques 25/02/2018“De que maneira, então, Sócrates e Platão arruinaram a filosofia antes que ela tivesse propriamente começado? Aparentemente cometeram o erro de tratá-la como uma investigação racional. A introdução da análise e do argumento irrefutável destruiu tudo.
Qual era, porém, essa preciosa tradição pré-socrática destruída pela introdução da
razão? Entre os filósofos pré-socráticos estavam alguns brilhantes excêntricos que
formulavam todo tipo de questões profundas: "O que é a realidade?", "O que é a
existência?", "O que é o ser?". Muitas dessas perguntas permanecem sem resposta dos
filósofos até os dias atuais (inclusive os filósofos modernos que se recusam a entrar no
jogo, declarando que tais perguntas simplesmente não deviam ser feitas).”
“Assim como Sócrates, Pitágoras tomou a precaução de nada registrar por escrito. Seus
preceitos somente chegaram a nós através das obras de seus discípulos, que agora
sabemos terem sido os responsáveis por grande parte da mistura de pensamento,
prática, matemática, filosofia e loucura, que hoje rotulamos de pitagorismo.”
“Esse pensamento insubstancial era uma característica frequente do pensamento pré-
socrático. Heráclito, discípulo de Pitágoras, por exemplo, acreditava que tudo era fluxo, e
declarava: "Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio."
“Aos olhos de Platão, a democracia estava tingida com as mesmas cores da tirania.”
“(Nenhuma teoria filosófica pode esperar ser duradoura, a menos que forneça espaço para que se discuta sua interpretação.)
A melhor explicação da Teoria das Ideias é a do próprio Platão (o que nem sempre é o
caso, em filosofia ou qualquer outra área). Infelizmente, sua explicação vem sob a forma
de uma imagem, o que a coloca antes no campo da literatura do que no da filosofia. Em
resumo, Platão explica que os seres humanos, em sua maioria, vivem como se estivessem
em uma caverna escura. Estamos acorrentados, de frente para uma parede branca, com
um fogo atrás de nós. Tudo o que conseguimos ver são sombras que tremem, dançando
na parede da caverna, e tomamos isso por realidade. Somente se aprendermos a nos
virar contra a parede e as sombras, e a escapar da caverna, poderemos esperar ver a
verdadeira luz da realidade.
Em termos mais filosóficos, Platão acreditava que tudo o que percebemos ao nosso
redor - sapatos, navios, lacres, repolhos e reis, da experiência cotidiana - é mera
aparência. A verdadeira realidade é o reino das Ideias ou das formas de que essa
aparência decorre. Assim, pode-se dizer que um determinado cavalo negro deriva sua
aparência da forma universal de um cavalo da cor negra ideal. O mundo físico que
percebemos com os sentidos está em contínuo estado de mudança. Em contrapartida, o
reino universal das Ideias, percebido pela mente, é imutável e eterno. Cada forma -
como circularidade, homem, cor, beleza etc. - atua como um modelo para os objetos
particulares do mundo. Mas esses objetos particulares são apenas cópias imperfeitas, e
sempre em mutação, dessas Ideias universais. Com o uso racional da mente podemos
apurar as noções que temos dessas Ideias universais e começar a apreendê-las melhor.
Desse modo, podemos nos aproximar da realidade última da luz do dia, localizada além
da caverna escura do mundo cotidiano.”
“Quando aprendemos a ignorar o mundo dos particulares sempre em mutação e nos
concentramos na realidade perene das Ideias, nossa compreensão começa a subir na
hierarquia das Ideias até uma apreensão ulterior e mística das Ideias de Beleza, Verdade
e, em última instância, do Bem.”
“Platão, nesse ponto, defende antes uma moral de iluminação espiritual do que quaisquer regras particulares de conduta. A Teoria das Ideias foi também criticada por sua falta de aplicação prática.”
“As opiniões de Platão sobre os tópicos mencionados são quase todas discordantes, em
essência, das hoje defendidas por todos, à exceção dos francamente fanáticos e dos
totalmente tolos.
Na república ideal de Platão não haveria propriedades ou casamento (a não ser para as
classes inferiores, que se presumia serem as únicas que se adequavam a esses hábitos).
As crianças seriam tiradas de suas mães logo após o nascimento e educadas
comunitariamente. Dessa forma, elas considerariam o estado como seus pais e todos os
contemporâneos se tornariam irmãos e irmãs. Até a idade de vinte anos esses bastardos
compulsórios receberiam educação em ginástica e em música edificante. (Não se
permitia música jônica ou lídia, apenas marchas militares para instilar coragem e amor à
pátria.)
(...)Ao chegar aos vinte anos, a ralé que tivesse demonstrado insuficiente apreço pelas intermináveis sessões de exercícios físicos e pelas orquestras de metais seria eliminada e encaminhada então para executar tarefas menores - tais como tornarem-se fazendeiros ou negociantes e garantirem o sustento de toda a comunidade. Os melhores alunos, no entanto, continuavam a estudar aritmética, geometria e astronomia por dez anos. Ensandecidos pela matemática, o lote seguinte de fracassados era enviado aos quartéis. Restava então apenas a creme de Ia creme. Por cinco anos, até que completassem trinta e cinco anos, era-lhes permitida a grande honra de estudar filosofia. Por quinze anos, então, dedicavam-se ao estudo prático dos assuntos de governo, mergulhando nos hábitos do mundo. Aos cinquenta anos eram
considerados aptos a governar.
Esses filósofos-governantes viviam todos juntos em acampamentos comunitários, onde
não possuíam quaisquer bens, podendo dormir juntos de acordo com a escolha de cada
um. Havia igualdade total entre homens e mulheres (embora em outro diálogo Platão
deixe escapar que "se a alma não consegue viver bem, pelo prazo que lhe é concedido,
em um homem, passa para o corpo de uma mulher"). Vivendo em comunidades e
desprovida de interesses pessoais, essa elite estaria, assim, imune a subornos: sua única
ambição seria assegurar a justiça no estado. Desse grupo era escolhido o chefe de
estado, o filósofo-rei.
Mesmo para a pequena cidade-estado ideal ("a quinze quilômetros do mar"), onde se
pretendia que tudo isso acontecesse, parecia ser uma receita de catástrofe. Na melhor
das hipóteses, um tédio entorpecedor - todos os poetas, dramaturgos e pessoas que
executavam o gênero não adequado de música foram banidos (da mesma forma que o
foram os advogados, para que não se pudesse processar ninguém). E na pior, um
pesadelo totalitário - com o desenvolvimento rápido de todos os métodos habituais e
desagradáveis necessários para manter no poder um regime tão impopular.”
“Nem a democracia nem a tirania tinham dado bons resultados, e havia uma necessidade
extrema de alguma forma de governo que pudesse garantir a ordem. (Na verdade, alguns
comentadores consideram que, quando Platão fala de justiça, ele pretende com
frequência falar de algo semelhante à ordem.) A resposta parecia estar em uma
sociedade controlada com rigor, como a que prevalecia em Esparta.”
“Na esteira da ingênua crença ética de Sócrates ("os bons são felizes"), Platão acreditava
que "apenas os injustos são infelizes". Imponha-se uma sociedade justa e todos estarão
bem.”
“De acordo com Platão: "A menos que os filósofos se tornem governantes ou que os governantes estudem filosofia, os males da humanidade não terão fim." (Na prática aconteceu precisamente o contrário. Os governantes inspirados por Ideias filosóficas causaram muito mais problemas do que os totalmente ignorantes em filosofia.)”
“Para Platão, a alma humana consistia em três elementos distintos. O elemento racional
esforçava- se por obter conhecimento, o espírito ativo buscava conquista e distinção,
enquanto os apetites procuravam satisfação. (Esses elementos repercutirão nos três
elementos da sociedade que Platão descreve na República: os filósofos, os homens de
ação ou soldados e a ralé, que mantinha o mundo em andamento e acreditava em se
divertir.) O homem honrado é governado pela razão, mas os três elementos têm um
papel a desempenhar. Não poderíamos prosseguir sem satisfazer nossos apetites, assim
como todo o estado ficaria paralisado se os operários desistissem de trabalhar e de se
divertir, tentando, ao contrário, tornarem-se filósofos. A questão reside em que a
honradez só pode ser alcançada quando cada um dos três elementos da alma cumpre
sua função específica
- assim como a justiça só é alcançada, em grande parte, no estado quando cada um dos
três elementos sociais cumpre o papel que lhe é destinado na sociedade.”
“A filosofia começa com a perplexidade.”