Alane.Sthefany 24/09/2022
Declínio de Um Homem - Osamu Dazai
"O receio de que a minha noção de felicidade estivesse totalmente em desacordo com a noção de felicidade do resto das pessoas fazia com que, noite após noite, eu me revirasse de um lado para o outro na cama, gemendo, quase a ponto de enlouquecer. Será que eu era feliz? Desde pequeno eu era chamado frequentemente de pessoa afortunada, ainda que me sentisse sempre no meio do inferno. Que ironia, sempre achei que as pessoas que me rotulavam daquele jeito pareciam ser muito, mas muito mais afortunadas do que eu."
"Desde criança, nunca tive os requisitos necessários de um ser humano qualificado."
"Desqualificado como ser humano.
Eu havia deixado de ser um ser humano por completo"
"Eu perdi o interesse por tudo. Perdi até mesmo a capacidade de sofrer."
"Já não há mais felicidade ou infelicidade para mim."
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Que livro triste. Biografia melancólica. E vida infeliz.
Esse livro me trouxe várias reflexões sobre o que se passa na cabeça de uma pessoa que perdeu totalmente a esperança na humanidade, na vida e em si mesmo. Pois ao lermos, notamos que o autor se descreve como um ser que não possui nenhum dos requisitos para "ser" um humano, descreve a humanidade como algo incompreensível e que nunca será compreendido por ele.
Muitas vezes ele se descrevia de uma forma como se não fizesse parte da raça humana, e que sempre o ser humano causava nele uma espécie de pavor que atemorizava
"O portão da casa de uma pessoa me atemoriza mais do que a porta do inferno da Divina comédia, e não exagero quando digo que sinto como se houvesse algum monstro horrível, um dragão, contorcendo-se e cheirando a carniça atrás dessas portas."
Até porque ele vivia uma vida como um ator, mas que nunca saia de cena, com uma "persona" totalmente diferente da real e verdadeira pertencente a ele, simplesmente para agradar os outros, e que por consequência disso, ele convivia com o medo desenfreado (sempre apavorado) das pessoas descobrirem o verdadeiro "EU" escondido por detrás daquela máscara que ele tanto usava (por meio de brincadeiras, palhaçadas, piadas, com o objetivo de fazer os outros sorrirem), mas que era diametralmente oposta a ele.
"Minha natureza real, entretanto, era diametralmente oposta à de um menino travesso"
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Curiosidades
Para quem leu o livro, recomendo assistir o Anime Aoi Bungaku (Ningen Shikakku), que é baseado nessa obra, um clássico da literatura japonesa. Em que adaptaram vários contos, um deles é o Ningen Shikkaku e outro também do Dazai chamado Hashire Melos. Além de outros autores importantes como Akutagawa e Natsume
O Ningen Shikkaku eu assisti logo após finalizar a leitura, e a experiência é incrivelmente impactante e única.
Estava pesquisando mais sobre o livro e o autor e citaram também o anime Bungou Stray Dogs, recomendo para quem gosta de assistir animes, esse tem diversas referências, pois todos personagens são referências a autores da literatura japonesa.
[...]
Olha a descrição que uma pessoa deu para a fotografia do Osamu Dazai:
"A terceira foto é a mais estranha de todas. Não sei dizer ao certo quantos anos ele devia ter ali. Seus cabelos parecem um pouco grisalhos. Está no canto de um quarto muito sujo (a foto mostra claramente a parede do quarto rachada em três lugares), aquecendo as mãos em um pequeno braseiro, e dessa vez não sorri. Não tem expressão nenhuma. Para ser mais exato, é uma foto realmente repugnante, sinistra, como se, sentado com as mãos sobre o braseiro, ele estivesse morto."
Trechos do Livro ?????
Eu desconhecia o que era sentir fome. Não quero dizer com isso que venho de uma família abastada, não é nesse sentido idiota, mas eu desconhecia por completo qual é a sensação de ter o estômago vazio. Pode parecer estranho dizer assim, mas, mesmo que estivesse com fome, eu não percebia.
(...) sempre me inspirou receio e medo. ?As pessoas trabalham para ganhar seu pão, pois se não comem, morrem.? Para mim, não havia frase mais obscura, difícil de entender e, ao mesmo tempo, que soasse mais ameaçadora do que essa.
Em resumo, eu ainda não compreendia nada sobre as ocupações das pessoas. O receio de que a minha noção de felicidade estivesse totalmente em desacordo com a noção de felicidade do resto das pessoas fazia com que, noite após noite, eu me revirasse de um lado para o outro na cama, gemendo, quase a ponto de enlouquecer. Será que eu era feliz? Desde pequeno eu era chamado frequentemente de pessoa afortunada, ainda que me sentisse sempre no meio do inferno. Que ironia, sempre achei que as pessoas que me rotulavam daquele jeito pareciam ser muito, mas muito mais afortunadas do que eu.
Chegava a pensar que sobre mim havia recaído um fardo de dez desgraças e que, se apenas uma delas fosse repassada ao meu vizinho, seria suficiente para matá-lo.
Sou absolutamente incapaz de estimar a natureza e o grau do sofrimento alheio.
(...) se essas pessoas não se suicidam, não enlouquecem, se discutem sobre partidos políticos, se não perdem as esperanças e seguem lutando sem se curvar, então não estão sofrendo, certo?
Teriam essas pessoas se tornado tão egoístas que não só não percebem o próprio egoísmo, como chegam mesmo a achar que é algo normal, sem nunca duvidar de si mesmas? Se for assim, é fácil. Mas será que todas as pessoas são assim mesmo, será isso o melhor que se pode esperar dos seres humanos? Não sei? À noite, dormem confortavelmente e, pela manhã, talvez acordem alegres. Que sonhos terão sonhado? No que será que pensam enquanto andam pelas ruas? Em dinheiro? Não pode ser apenas isso. Tenho a impressão de já ter ouvido a teoria de que o ser humano vive para poder comer, mas a de que vive pelo dinheiro, acho que nunca ouvi, não, se bem que, dependendo? Não, também não entendo isso. Quanto mais penso, menos consigo entender, e vivo sempre assolado pela ansiedade e o medo de ser o único destoante por completo. Eu quase não consigo falar com meus próximos. Simplesmente não sei o que dizer e tampouco como dizê-lo.
Eu temia as pessoas no mais elevado grau, mas mesmo assim não conseguia abandoná-las de modo algum.
Ainda que carregasse um sorriso permanente no rosto, era um esforço constante que parecia sempre prestes a fracassar, e cuja árdua execução me fazia suar aos borbotões.
Mesmo quando algum parente ralhava comigo, eu jamais respondia. Recebia qualquer pequena reprovação como um trovão que reverberava a ponto de me deixar atônito. Longe de querer responder a uma reprimenda, achava que aquilo era sem dúvida a voz da ?Verdade? humana fazendo-se ouvir ao longo dos séculos, e que talvez, se eu não era capaz de agir de acordo com essa verdade, eu estava desqualificado para viver em sociedade. Por esse motivo, não conseguia discutir, nem me justificar. Sempre que ouvia alguma crítica, acreditava que, de fato, eu tinha entendido tudo completamente errado, e recebia o impacto em silêncio, enquanto por dentro o medo quase me fazia perder a cabeça.
É bem provável que ninguém se sinta bem quando é criticado ou é alvo da ira de outra pessoa, mas eu vejo no rosto daqueles que se irritam comigo uma expressão selvagem, mais assustadora do que de qualquer leão, dragão ou crocodilo. Normalmente, as pessoas escondem essa índole inata, mas quando alguma coisa acontece, a verdadeira face humana se revela pelo ódio de modo repentino, como quando uma vaca que dorme tranquilamente no campo mata de súbito, com um golpe de rabo, uma mosca que pousou em sua barriga. Esses momentos faziam com que o medo voltasse a me assombrar, me deixando de cabelos arrepiados, e quando pensava que essa índole inata talvez fosse uma condição para as pessoas sobreviverem, eu acabava tomado pelo desespero.
Sempre tremia de medo das demais pessoas e nunca tive sequer uma migalha de autoconfiança em relação às minhas palavras e aos meus atos como ser humano. Guardava minhas angústias em uma pequena caixa dentro do peito e, escondendo com discrição minha tristeza profunda e meu nervosismo, aperfeiçoei-me em ser um personagem excêntrico e brincalhão, permanentemente revestido de um otimismo inocente.
?Se eu fizer as pessoas rirem, não importa como, ficará tudo bem. Fazendo isso, elas talvez não se importem com o fato de eu estar fora da tal ?vida cotidiana?. De qualquer maneira, não posso ser um estorvo para os humanos: devo ser o nada, o vento, o céu?, pensava. E conforme esses pensamentos se intensificavam, mais eu fazia minha família rir e me esforçava para entreter até mesmo os criados, pessoas ainda mais assustadoras e incompreensíveis.
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Certa noite, antes de ir para Tóquio, meu pai reuniu a mim e meus irmãos na sala de visitas e, sorrindo, perguntou a cada um de nós que presente gostaríamos de receber, anotando cada uma das respostas na agenda. Era raro papai nos tratar com tanta afeição.
? Yozo, o que você quer? ? perguntou ele. Eu engasguei.
Foi só ele me abordar a respeito, que imediatamente não desejei mais nada. Qualquer coisa, tanto faz, não tem nada que me divirta mesmo, foi o que me passou pela cabeça.
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Eu era quase respeitado pelos colegas. Mas também a ideia de ser respeitado era para mim algo assustador. Minha definição de ser ?respeitado? era a de enganar a todos quase completamente, até ser desmascarado por algum ser onipotente e onisciente, que me reduziria a pó, numa vergonha pior do que a morte. Mesmo que você engane os seres humanos e consiga ?ser respeitado?, alguém vai saber da farsa, vai acabar contando para os outros e, quando perceberem que foram enganados, será terrível a ira e a vingança dos seres humanos! Só de imaginar fico com os pelos do corpo todo arrepiados.
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Entreguei o texto e, como tinha certeza de que o professor iria rir, segui-o escondido. Assim que ele saiu da sala de aula, puxou minha redação do meio das outras e começou a lê-la enquanto andava pelo corredor, tentando segurar o riso. Quando terminou a leitura, na sala dos professores, ele estava completamente ruborizado, gargalhando com estridência, e mostrou em seguida aos outros professores, o que me deixou extremamente satisfeito.
Palhaçadas.
Eu consegui ser visto como um brincalhão. Assim, pude escapar de ser respeitado. Tirava nota dez em todas as matérias, e era somente em ?comportamento? que tirava nota seis ou sete, o que virava, mais uma vez, motivo de gargalhadas em minha casa.
Minha natureza real, entretanto, era diametralmente oposta à de um menino travesso. Nessa época, eu já havia aprendido coisas lamentáveis com os empregados e empregadas da casa. Eu fora abusado. Hoje penso que cometer um crime assim contra uma criança é a coisa mais vil, hedionda e terrível que um ser humano pode fazer. Mas eu suportei calado. Acreditava que aquilo me permitia ver mais um ângulo da natureza humana, e ria abatido.
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?Que conversa é essa de não ter fé no ser humano? Hein? Quando foi que você virou cristão??, talvez questionem algumas pessoas, escarnecendo. Contudo, não creio que a descrença no ser humano esteja necessariamente ligada à religião. Os homens, incluindo os que escarnecem de mim neste momento, vivem em plena descrença mútua, serenamente, sem ao menos pensar em Deus, não é mesmo?
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A vida humana está repleta desses exemplos, de seres humanos enganando uns aos outros sem sequer se magoar por isso, como se nem mesmo percebessem que estão se enganando mutuamente.
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O que não consigo compreender são as pessoas que, enquanto se enganam mutuamente, vivem com pureza, alegria e serenidade ? ou que acreditam poder viver assim. Os homens, no fim das contas, jamais me ensinaram esse segredo velado. Se pelo menos eu o tivesse compreendido, talvez não precisasse sentir medo dos seres humanos e fazer esforços tão extraordinários para entretê-los. Não precisaria ter me oposto à vida humana, nem experimentado, noite após noite, tormentos tão infernais. Ou seja, creio que não foi pela descrença no ser humano e muito menos por tendências cristãs que não denunciei a ninguém o crime lastimável dos criados e criadas, mas porque para mim, Yozo, a confiança dos seres humanos era inalcançável, selada por uma carapaça. Pois até mesmo meus pais, vez por outra, tinham atitudes incompreensíveis.
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Era a primeira vez que eu morava em outra cidade, mas para mim aquele local era mais confortável do que minha terra natal. Uma explicação possível é que, por essa época, minhas palhaçadas já haviam se tornado parte de mim de tal forma que eu já não precisava me esforçar tanto para enganar as pessoas. Acredito, todavia, que o motivo principal fosse a diferença de dificuldade entre encenar na frente de meus pais e para outras pessoas, entre encenar na minha cidade e em outro lugar. Qualquer gênio, até mesmo Jesus Cristo, deve sentir essa diferença. O local mais arriscado para um ator é o teatro de sua cidade natal: creio que qualquer magnífico ator ficaria sem ação com toda a família e demais parentes presentes para assisti-lo. Mas eu vinha atuando assim. E com muito sucesso, inclusive. Não havia chances de um ator tão talentoso fracassar longe de casa.
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Quando comecei a baixar a guarda, acreditando piamente já ter conseguido ocultar minha verdadeira identidade, fui pego desprevenido de forma inesperada.
Dentre todos os meninos da turma, havia aquele que era o mais fracote, o de cara mais pálida, um menino que vestia um casaco de mangas compridas demais para ele ? provavelmente uma roupa velha herdada de um irmão ou do pai ?, que não tinha capacidade para o estudo e ficava apenas observando os outros alunos nos exercícios físicos. Era praticamente um idiota. Não é de surpreender que eu não tenha reconhecido que precisava manter minha guarda até mesmo contra ele.
Num dia fatídico, na aula de ginástica, esse menino (não consigo lembrar seu sobrenome; o seu nome era Takeichi, disso lembro-me bem) estava lá, como sempre ?observando? enquanto fazíamos exercícios nas barras de ferro. Com o rosto compenetrado e encarando as barras, dei um grito e saltei em direção a elas. Errando de forma deliberada a distância, caí sentado no chão de areia, um erro caprichosamente calculado. Aquilo foi motivo de riso para todos, e eu também ria sem graça enquanto me erguia do solo e limpava a areia das calças, quando, sem que eu percebesse, Takeichi se aproximou por trás e sussurrou:
? De propósito, você fez de propósito.
Foi um choque. Nunca pensaria que dentre todas as pessoas, logo Takeichi poderia me desmascarar. Por um instante, senti como se estivesse vendo o mundo ser envolvido e consumido pelas chamas do inferno, e gritei tentando expulsar aquele indício de loucura.
Os dias que se seguiram foram de temor e angústia.
Por fora eu continuava fazendo com que todos rissem de minhas tristes momices, mas às vezes, sem perceber, suspirava angustiado. ?Não importa o que eu faça, Takeichi vai perceber e, com o tempo, certamente vai espalhar meu segredo a todos?, eu pensava, com a testa coberta de suor, olhando ao meu redor o tempo todo, como um insano.
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Durante minha vida, desejei inúmeras vezes ser assassinado, porém nunca pensei em matar alguém. Acreditava que matar um adversário temível, ao contrário do esperado, traria felicidade apenas ao próprio adversário.
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(...) muitas vezes achei que seria mais complicado, trabalhoso e desagradável compreender os meandros sentimentais femininos do que perscrutar os pensamentos mais profundos de uma minhoca. Mas ainda criança aprendi que, quando uma mulher irrompe em choro, basta dar-lhe algo doce para que seu humor se restabeleça.
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Ah! Esses pintores foram tão feridos e intimidados pelos monstros chamados seres humanos que por fim acabaram acreditando na ilusão, chegando a ver monstros em plena luz do dia, ao ar livre. Esses pintores, contudo, não enganaram ninguém com palhaçadas: eles se esforçaram por representar exatamente o que viam.
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Quão superficial e estúpido é tentar retratar a beleza de algo que achamos belo.
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As pessoas também falam sobre ?ter a consciência pesada?. No meu caso, esse peso surgiu quando eu ainda era um bebê e, com o tempo, em vez de desaparecer, foi agravando cada vez mais, a ponto de quase não conseguir mais carregá-lo.
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Acreditava que a vida na prisão talvez fosse mais agradável do que viver gemendo em minhas infernais noites de insônia por temer aquilo que os seres humanos chamavam de ?vida real?.
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(...) mesmo tendo fugido, não conseguia sentir-me bem comigo mesmo. Foi então que decidi me matar.
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Em meu coração, permaneciam imutáveis meus medos, minhas suspeitas e minhas dúvidas sobre a autoconfiança e a violência dos seres humanos (...)
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Dizem que ?o fim do dinheiro é o fim das relações?, mas normalmente as pessoas entendem ao contrário.
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Eu não costumava ter grande desejo de posse e, ainda que por vezes vislumbrasse um sentimento de perda, não tinha coragem suficiente para afirmar meus direitos de posse e lutar com alguém por algo.
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Por volta do amanhecer, ela pronunciou pela primeira vez a palavra ?morte?. Aquela mulher também parecia estar esgotada da condição de ser humano; e sempre que eu pensava sobre meus temores mundanos, como dinheiro, o movimento, mulheres, estudos, parecia-me impossível continuar vivendo e tendo de suportar tudo aquilo. Aceitei sua proposta sem cerimônia.
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A diferença era tão notável que me parecia perverso ? ou talvez cômico ? o quão rápido os seres humanos se transformam, com a mesma facilidade com que abrem e fecham as mãos.
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Eu havia me tornado quase que por completo um verdadeiro parasita.
Como ele mesmo havia dito, eu era um homem sem resoluções, sem noção nenhuma sobre o rumo do próprio futuro (...)
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Uma de minhas trágicas qualidades é que, mesmo sabendo que serei descoberto, tenho medo de dizer a verdade e, por isso, acabo mascarando a realidade. É algo parecido com o que se costuma chamar depreciativamente de ?mentiroso?, mas eu quase nunca adornei a verdade esperando beneficiar-me com isso: sentia um pavor sufocante de esfriar, de modo brusco, o clima de um diálogo e, mesmo quando sabia que aquilo mais tarde se transformaria em desvantagem para mim, me sentia compelido a prestar meus ?favores desesperados?. Esse devia ser um tipo deformado de fraqueza, uma idiotice, entretanto, esse sentimento de agradar os outros fazia com que eu terminasse por sempre enfeitar os fatos.
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Ainda que sempre me esforçasse para ser agradável com todos, jamais experimentei uma verdadeira amizade.
Sei que as pessoas gostam de mim, apenas me falta a capacidade de amar alguém. (Embora eu tenha minhas dúvidas se os seres humanos, em geral, têm essa capacidade de ?amar?.) Sendo assim, era difícil supor que eu pudesse ter algo como um ?amigo íntimo? ? além do mais, eu não tinha sequer a habilidade de ?fazer visitas?.
"O portão da casa de uma pessoa me atemoriza mais do que a porta do inferno da Divina comédia, e não exagero quando digo que sinto como se houvesse algum monstro horrível, um dragão, contorcendo-se e cheirando a carniça atrás dessas portas."
Eu não tinha amigos. Eu não tinha para onde ir.
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É verdade que eu temia a pobreza, mas jamais pretendi menosprezá-la
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Meu desânimo e minha melancolia, entretanto, só cresciam. Eu havia afundado até o cerne de minha tristeza. Por vezes, enquanto desenhava a série de quadrinhos As aventuras de Kinta e Ota para a revista de Shizuko, a lembrança de minha terra natal fazia com que meu coração ficasse tão apertado que minha caneta parava de se mover sobre o papel, e eu ficava com o olhar perdido em meio às lágrimas que rolavam.
Em momentos assim, minha única e parca salvação vinha de Shigeko. Nessa época, ela já me chamava de ?papai? sem hesitar.
? Papai, é verdade que, quando rezamos para Deus, ele nos dá o que pedimos?
Imaginei que eu mesmo gostaria de fazer uma prece assim: ?Oh! Concedei-me uma determinação de gelo. Fazei com que eu conheça a essência do ?ser humano?. Não é pecado um homem passar sobre outro homem? Concedei-me a máscara do ódio.?
? É sim. Tenho certeza de que Ele dará qualquer coisa que você pedir; já para o papai, creio que não.
Eu temia inclusive a Deus. Não podia crer em amor divino, apenas em punição divina. Fé. Isso, para mim, era como encarar cabisbaixo o tribunal dos céus, somente para poder receber uma chicotada de Deus. Ainda que acreditasse no inferno, por mais que tentasse, não podia acreditar na existência do céu.
? Por que não?
? Porque eu desobedeci meu pai.
? É mesmo? Mas todo mundo diz que você é uma pessoa muito boa!
Isso é porque os enganei. Eu estava ciente de que todos no apartamento gostavam de mim, no entanto era extremamente difícil explicar para Shigeko a infelicidade vinda dessa minha patologia. Quanto mais eu temia os seres humanos, mais eles me amavam, e quanto mais eles me amavam, mais eu os temia, o que acabava por fazer com que me afastasse de todos.
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Horiki passara a visitar-me em casa. Apesar de ele ter me tratado tão mal no dia em que eu fugira, eu não conseguia recusar suas visitas e recebia-o com um leve sorriso no rosto.
? Parece que seus mangás estão ficando famosos, hein! Os amadores com sua coragem temerária desconhecem o perigo, por isso mesmo não dá para competir. Mesmo assim, fique atento: seus desenhos ainda têm muito que melhorar.
Ele ousava bancar o mestre comigo.
(...)
? Esse seu talento para levar a vida, um dia, encontra seu fim.
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Se você ultrapassar este ponto, a sociedade não irá perdoá-lo.
Mas afinal de contas, o que é a sociedade? Seria o plural de ?ser humano?? Onde fica a substância dessa tal sociedade? Seja como for, eu havia passado minha vida toda imaginando que a sociedade fosse algo possante, terrível e amedrontador. Porém, quando Horiki disse aquilo, pensei num segundo: ?Sociedade? Você quer dizer você mesmo, não??
As palavras me vieram até a ponta da língua, mas como não me agradava a ideia de irritar Horiki, as segurei.
(A sociedade não permitirá isso.)
(Não é a sociedade. É você quem não permitirá, não é verdade?)
(Se você fizer isso, a sociedade lhe dará uma lição.)
(Não é a sociedade, mas sim você, não é mesmo?)
(Quando menos esperar, você será ignorado pela sociedade.)
(Não é a sociedade. É você quem vai me ignorar, não é?)
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Daquele momento em diante, passei a ter isso quase como uma filosofia de vida: a sociedade não passa de indivíduos, não?
Desde que comecei a suspeitar que a sociedade fossem apenas os indivíduos, consegui, ainda que somente um pouco, agir mais de acordo com meus próprios desejos.
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"E então, na manhã seguinte, tudo recomeçava igual
Bastava apenas seguir os costumes da véspera
E quem pode evitar as grandes alegrias rudes
Naturalmente também evita as grandes dores
Como um sapo que contorna uma pedra em seu caminho."
(Versos de Guy-Charles Cros)
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Quando as cerejeiras já estavam perdendo suas pétalas e adquirindo suas folhas novas, peguei alguns trajes de vestir por baixo do quimono e algumas faixas de Shizuko, e as levei à casa de penhores. Com o dinheiro ganho, passei duas noites fora de casa, bebendo em Ginza. Na noite do terceiro dia, sentindo-me mal, voltei para o apartamento, procurando abafar, sem que me desse conta, o som de meus passos. Em frente à porta, pude ouvir Shizuko e Shigeko conversando.
? Por que o papai bebe?
? O papai não bebe porque ele gosta de beber. É que, como ele é uma pessoa muito boa, ele?
? As pessoas boas bebem?
? Nem sempre, mas?
? Acho que o papai vai ter uma surpresa!
? Não sei se ele vai gostar. Olhe só! Ele saltou para fora da caixa!
? Parece O coelho impaciente, não é?
? Parece mesmo ? ouvi Shizuko rir baixinho, parecendo verdadeiramente feliz.
Abri uma pequena fresta da porta e espiei dentro. Um coelho branco. Ele pulava para lá e para cá dentro da sala enquanto mãe e filha o perseguiam.
(Elas são pessoas felizes. Se um idiota como eu ficar entre essas duas, logo vai acabar com elas. Uma felicidade modesta. Boa mãe, boa filha. Ah! Se Deus puder ouvir as preces de alguém como eu, peço, nem que seja uma única vez na vida, a felicidade!)
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Sociedade. Sentia que talvez estivesse começando a entender o significado dessa palavra. É a luta entre um indivíduo e outro. Além disso, é a luta aqui e agora, a vitória naquele momento: só isso importa.
"Seres humanos jamais se submetem a outros seres humanos. Mesmo os escravos praticam suas vinganças vis. O ser humano pensa apenas em cada batalha, sem se preocupar em encontrar meios para viver mais. Fala-se em razão e justiça, quando a meta real de todo esforço é o indivíduo. E quando o indivíduo é superado, há outro indivíduo à sua frente. A dificuldade de compreender a sociedade é a dificuldade de compreender o indivíduo. Percebendo que o mar eram os indivíduos, não a sociedade, me libertei em parte do terror que sentia desse mar fantasmagórico chamado mundo."
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De fato, a existência de milhões de bactérias nadando no ar à nossa volta está cientificamente comprovada. Mas o que eu compreendi foi que, ao mesmo tempo, se você ignora por completo a existência desses seres, eles perdem toda e qualquer relação com você e passam a ser nada mais do que ?fantasmas da ciência?. Se 10 milhões de pessoas deixam sobrar três grãos de arroz em suas refeições, quantos sacos de arroz são desperdiçados por dia? Ou ainda: se 10 milhões de pessoas economizassem uma folha de lenço de papel por dia, quantas árvores não seriam salvas? Eu era assombrado por essas ?estatísticas científicas?, e sempre que deixava um grão de arroz no prato ou usava um lenço de papel, sentia como se fosse o rei do desperdício, como se eu tivesse cometido algum crime hediondo. Mas essas são apenas ?mentiras da ciência?, as ?mentiras da estatística? e as ?mentiras da matemática?, pois não há como recolher três grãos de arroz de todas as pessoas. Mesmo como exercício de multiplicação e divisão, esse seria dos mais elementares, um tema primariamente simples, tão idiota como calcular a probabilidade de alguém escorregar no banheiro escuro e cair na privada; ou a quantidade de pessoas que prendem seus pés no vão entre a plataforma e o trem. Ainda que seja possível, nunca soube de um único caso de alguém que tenha se ferido ao falhar na tentativa de sentar-se no vaso sanitário. Sentia dó de mim mesmo por, até aquele momento, ter acreditado com temor nas tais hipóteses ?científicas? como circunstâncias verossímeis, e chegava mesmo a ter vontade de rir agora que, pouco a pouco, descobria a verdadeira face do mundo.
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Eu desejava impacientemente, e de coração, uma alegria violenta, mesmo que depois dela viesse uma enorme tristeza.
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A ideia de morrer não me incomodava, mas tinha horror da possibilidade de me ferir, perder sangue, tornar-me um aleijado ou coisas do gênero.
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Eu e Horiki.
Andávamos juntos, sempre escarnecendo um do outro e fazendo pouco caso de nós mesmos. Se isso é o que se pode chamar de ?amizade? neste mundo, então de fato éramos amigos.
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? Não seja atrevido. Eu, pelo menos, nunca passei pela vergonha de ser amarrado como um criminoso.
Aquilo me pegou de surpresa. No fundo do coração de Horiki, eu não chegava a ser um ser humano completo: para ele, eu era alguém que não conseguiu sequer morrer, um sem-vergonha, um fantasma imbecil, o que vulgarmente se chama de ?cadáver ambulante?, e a ?amizade? dele não tinha outro propósito a não ser aproveitar-se de mim o máximo possível.
(...)
Desde criança, nunca tive os requisitos necessários de um ser humano qualificado. Ser menosprezado até mesmo por esse homem talvez fosse algo justo, pensei.
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? Porém, não é só o fato de ir para a cadeia que define um crime. Acho que se soubesse o antônimo de crime, sua verdadeira forma passaria a ser palpável, mas? Deus? salvação? amor? luz? O antônimo de Deus é diabo, o de salvação é perdição, o de amor é ódio, o de luz é escuridão, o de bem é mal. Crime e prece, crime e arrependimento, crime e confissão?
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Crime e castigo. Dostoiévski. Num relance, essas palavras passaram por um recanto escondido de meus pensamentos, espantando-me. Suponhamos que Dostoiévski tenha colocado essas duas palavras lado a lado não como sinônimos, mas como antônimos? Crime e castigo: noções tão irreconciliáveis quanto água e óleo.
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Infelicidade. Há tanta gente infeliz neste mundo. Dizer que só há gente infeliz não seria exagero. Contudo, essas pessoas conseguem lutar contra o mundo com bravura, e o mundo compreende e se compadece dessa luta.
Minha infelicidade, porém, provinha unicamente de meus pecados, logo eu não tinha meios para lutar contra quem quer que fosse.
(...) eu não passava de um torrão de pecados, e me enterrava cada vez mais fundo em minha própria infelicidade, sem nenhum plano concreto para impedir essa queda.
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À noite, voltei a me preocupar com o sangue que eu havia tossido em segredo, o que fez com que me levantasse e fosse novamente até aquela farmácia. Dessa vez, entre sorrisos, relatei todo o meu histórico de saúde à proprietária e pedi-lhe conselhos.
? Você precisa parar de beber ? asseverou ela como se fôssemos parentes.
? Talvez tenha me tornado um alcoólatra. Agora mesmo tenho vontade de beber.
? Pois não deve. Meu marido também vivia bebendo, apesar da tuberculose. Ele dizia que ia matar as bactérias com o álcool, e acabou por reduzir sua própria vida.
(...)
Por fim, disse que havia um remédio para quando eu não pudesse mais conter meu desejo de beber, e embrulhou rapidamente a caixinha.
Era uma injeção de morfina.
Ela disse que aquilo era menos prejudicial do que a bebida, e eu acreditei nela. Além disso, precisamente naquele momento a embriaguez começara a me parecer imunda, e fiquei contente por, depois de tanto tempo, conseguir escapar das garras desse demônio chamado álcool.
(...) cheguei à conclusão de que as drogas eram coisas tão miseráveis e imundas quanto o álcool ? não, muito mais ?, já havia me tornado um completo viciado.
Preciso morrer: viver é uma fonte de pecados.
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Yoshiko me deu uma trouxa contendo uma muda de roupas e, em silêncio, retirou da faixa de seu quimono e entregou-me a seringa e o resto da morfina. Ela, sem dúvida nenhuma, continuava acreditando que aquilo era apenas um tônico.
? Não. Não preciso mais disso.
"Foi um acontecimento realmente raro. Posso dizer, sem falsidade, que aquela foi a primeira vez em toda minha vida que recusei algo que me ofereceram. Minha infelicidade era a de um homem incapaz de recusar. Tinha medo de que, ao recusar algo que me fosse oferecido, uma fissura eterna e irreparável surgisse em meu coração, e no coração da outra pessoa."
Naquela hora, porém, neguei com naturalidade a morfina que outrora buscara com desespero. Talvez tenha sido o choque da ?ignorância divina? de Yoshiko? Imagino se não teria deixado de ser dependente naquele exato instante.
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(...) havia sido levado até ali e agora era um louco. Ainda que pudesse sair dali, estaria para sempre marcado na testa como ?maluco?, ou melhor, como ?inválido?.
Desqualificado como ser humano.
Eu havia deixado de ser um ser humano por completo.
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Eu perdi o interesse por tudo. Perdi até mesmo a capacidade de sofrer.
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Já não há mais felicidade ou infelicidade para mim.
Tudo passa.
Apenas isso. Essa é a única coisa próxima a uma verdade que encontrei no mundo dos chamados ?seres humanos?, o inferno onde eu tenho vivido até agora.
Tudo passa.
Neste ano, completarei 27 anos de idade. Meu cabelo está completamente branco, e quem olha para mim diz que pareço ter mais de 40.