Tracinhas 20/09/2015
por Lídia Rayanne
Certa vez li em um artigo que o problema do escritor brasileiro é que ele escreve “do estômago”. Falta-lhe técnica, estilo e profissionalização, como acontece com a maioria dos escritores internacionais. Como aspirante a escritora, e tendo muitas amigas que escrevem também, este é um fato triste de se constatar, pois sou daquelas que acreditam no potencial e talento dos novos autores. Mas lendo Eclipse da Vida, confesso: nem sempre escrever à base da intuição pode beneficiar uma história.
Pela sinopse, há de se pressupor que Eclipse da Vida siga uma linha investigativa ou talvez de mistério, já que seus protagonistas estão privados de suas memórias e passam por experiências inusitadas. O que não é o caso, caro leitor. O livro não segue essa linha, muito menos obedece a qualquer técnica de narrativa que leve a história adiante. Os personagens são guiados apenas de uma situação para outra, sem questionar praticamente nada do que lhes é apresentado.
Isso poderia parecer inovador para uma trama que possui uma premissa já “batida”, afinal, existem incontáveis casos na literatura de pessoas que acordam sem memória. No entanto, tal passividade acaba ferindo o bom senso do leitor e prejudicam o andamento da trama.
Entendam: escrever um livro é como fazer uma sopa: você precisa de certos ingredientes para que o resultado final seja palatável. Você pode até pular alguns ingredientes e subverter outros a fim de conseguir um novo resultado, mas você precisa ter consciência de que, independente de como fará a sua sopa, você terá que usar alguns desses ingredientes porque senão ela ficará “aguada”.
E é exatamente isso o que falta em Eclipse da Vida – ingredientes (leia-se técnica) que coloquem sabor à trama. Existem uma infinidade de técnicas para criação de roteiro, mas para exemplificar, vou mencionar algumas das 22 Regras que a Pixar (para mim, uma empresa que domina a arte de contar histórias) utiliza na criação de seus roteiros:
“Se você fosse seu personagem, nessa situação, como você se sentiria? Honestidade empresta credibilidade a situações inacreditáveis.”
Como Eclipse da Vida subverte essa simples regra? Vejamos:
Eduardo (que apenas no final do livro é mencionado que ele é um homem de negócios, logo não vejo qual a necessidade de colocar esse Spoiler na sinopse) acorda num trem, sem memória de NADA. Qualquer pessoa em seu senso normal se perguntaria: “Quem sou eu? O que estou fazendo aqui? Quem é essa loira vindo em minha direção e quais as intenções dela para comigo?”. Mas não. Não rola uma desconfiança sequer. Eduardo apenas sente uma paz diante a sua nova companheira de viagem, e ainda tira um cochilo ao lado dela antes de chegarem ao seu destino.
Quando acordam, Eduardo e Sofie (a tal mulher) descobrem que estão indo para a Veneza (e até hoje nem sei se os personagens falavam em italiano ou outra língua), descem na estação e passeiam tranquilamente pela cidade. Enquanto lia isso, só conseguia pensar: “Mas como eles podem fazer isso se eles perderam a memória??? Como eles sabem se locomover sem dificuldade?”
E a desculpa que o autor dá, caro leitor, é que os personagens simplesmente se deixam guiar pela intuição, que é a temática do livro inteiro. No entanto, mencionar um fato não é o bastante para convencer. Você tem que fazer com que o leitor acredite que essa intuição é verossímil, mas a única explicação que temos é essa.
Enfim, nessas andanças por Veneza, Eduardo e Sofie acabam adentrando numa igreja. Lá dentro encontram um casal que diz que nunca sentiram uma energia tão intensa quanto a deles, e que Eduardo e Sofie só podem ser as pessoas pelas quais estavam esperando.
E se você pensa que Eduardo e Sofie se perguntaram como eles sabiam disso, pode ter a certeza de que não. Eles aceitam tais respostas com uma facilidade tão grande que acho que nem as crianças de hoje em dia fariam. Vejam bem: temos um casal desmemoriado, e os dois estão de boas com tudo o que está acontecendo; não tem nem um pra botar dúvida no outro, pra protestar, pra botar lenha na fogueira. Eles raramente questionam o que lhes é dito, o que fere outra importante regra:
“Dê opiniões aos seus personagens. Passível e maleável pode parecer agradável conforme você escreve, mas é veneno para o público.”
E passível e maleável é justamente o que Eduardo e Sofie são. Eles não têm personalidade nenhuma, são mais rasos que colher de chá. Mal dá pra diferenciar um do outro, porque eles são muito parecidos em sua maneira de lidar com a situação que lhes é apresentada. Isso deve ter ajudado o autor em seu objetivo divulgar sua filosofia de vida, mas veja bem, isto quebra outra regra:
“Você precisa ter em mente aquilo que é interessante para você como público, não aquilo que o diverte como escritor. São coisas BEM diferentes.”
E é o que acontece ao longo do livro inteiro. Eduardo e Sofie são envolvidos cena após cena pelos ensinamentos de cada personagem que encontram em sua jornada. A maioria dos personagens que o casal encontra não passa da típica figura do Sábio da Jornada do Herói, mas são tantos que poderiam ter se resumido numa única personagem relevante.
E mesmo com tantos mentores, não fica claro ao longo do livro que filosofia é essa que apregoam aos personagens principais. A única certeza que temos é que são experiências transcendentais, que falam sobre a importância do amor e de estarmos conectados com o Universo. O livro até que tem umas frases de efeitos tocantes, mas que perdem o peso diante de tantas discrepâncias e falta de sinceridade na maneira de como os personagens lidam com a situação. A impressão que tive ao longo da leitura foi que o autor teria sido muito mais feliz se tivesse escrito uma biografia relatando suas experiências, ao invés de criar uma história rasa de emoções e com personagens terrivelmente bidimensionais, que não mudam nem evoluem.
Se fosse o caso de que Eduardo e Sofie questionassem o que acontecia com eles, mas, no decorrer da história, acabassem aceitando ou pelo menos tentando compreender, ficaria mais crível. Causaria uma identificação com o leitor, pois quantos de nós já não passamos por situações em que tivemos dúvidas se o que nos diziam era verdade? Mas não. Falta essa sinceridade com o leitor, falta profundidade e, principalmente, tensão.
Tensão nem sempre significa pancadaria, explosões, tiros. Pelo contrário. Tensões psicológicas, conflitos internos e morais podem se tornar uma boa maneira de conduzir uma narrativa. Mas acontece que, na busca de propagar sua filosofia, o autor esqueceu-se de inserir este elemento à história. As cenas são como a sopa rala de que mencionei anteriormente, não tem consistência ou profundidade. Quando há uma cena de perseguição (lá pro meio do livro) ela não tem impacto relevante. Em um parágrafo um personagem consegue invadir a mansão onde outro está aprisionado, no parágrafo seguinte já tinha encontrado a tal pessoa, meia dúzia de diálogos depois estavam todos são e salvos.
Falta descrição nesse livro, de situações, emoções. Quando um personagem dizia que sentia o amor de fulano ou que amava sicrano, era difícil para mim acreditar em tais sentimentos porque eu não conseguia sentir a mesma coisa que o personagem principal dizia que sentia. Não havia profundidade ou um antecedente que me convencesse da sinceridade desses sentimentos.
Outra coisa que é vagamente explorada é o cenário. Estamos na Itália, mas não nos sentimos na Itália. Os personagens passam por algumas das cidades mais famosas do mundo, porém não são mencionados prédios históricos ou marcos arquitetônicos para tornar a história mais verossímil. Eduardo e Sofie entram em várias igrejas sem nome, o que até me fez me perguntar se tais igrejas existiam no “mundo real” ou apenas eram visíveis àqueles que eram suscetíveis à energia mencionada no livro.
E a falta de certeza da realidade é uma constante nesse livro. Numa hora os personagens estão em determinado lugar e num minuto em outro. O que o autor tentou justificar com a desculpa de que o tempo para Eduardo passava de forma diferente dos outros, mas a explicação ficou confusa. Tudo possui um aspecto onírico. O livro chegou ao fim e até o presente momento não sei se tudo não passou de um sonho, ou uma visão, ou uma experiência transcendental real. E mesmo que fosse o caso, é preciso ter habilidade para pelo menos empregar um pouco de lógica ao que a mente humana não consegue compreender.
Concluindo: Eclipse da Vida é um livro que possui certo potencial, mas que foi perdido com a falta de maturidade na narrativa. É um diamante bruto que ainda precisa ser lapidado com muita leitura crítica, de beta readers sinceros, para alcançar o seu verdadeiro brilho. Ao autor, deixo um último e valioso conselho da Pixar:
“Tentar escrever sobre um tema é importante, mas você só vai saber do que a história realmente trata quando chegar ao final dela. Agora, reescreva.”
E reescreva, releia e reescreva. Leia alguns livros sobre técnicas de narrativa, reescreva de novo, peça a sincera orientação de alguém que também escreve, e reescreva mais uma vez.
P.S.: A diagramação e o acabamento do livro merecem um elogio, apesar de ter havido alguns poucos erros de formatação.
site: http://jatracei.com/post/129469661447/resenha-86-eclipse-da-vida