ElaManoela 10/06/2018
As várias facetas de Nós
Salim Miguel nasceu no Líbano em 1924, se mudou com a família para o Brasil em 1927, lançou o primeiro livro "Velhice e outros contos" em 1951 e, seu livro de maior sucesso pela crítica foi "As várias faces", escrito em 1994.
"Nós" foi sua estreia no gênero de Romance Policial, escrito em 2015, estando o autor já com 91 anos de idade.
"Nós" é um livro de apenas 90 páginas, porém muito bem amarrado, e, mesmo para os leitores mais atentos, é necessária a releitura de alguns trechos para que nenhum nó permaneça atado ao fim da história.
Damos início ao livro com a seguinte citação, de Cora Coralina: "Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do Passado antes que o Tempo passe tudo a raso."
Em uma divisão de pequenos capítulos, são apresentados os personagens nomeados apenas por pronomes (Eu, Tu, Ela, Um Outro, Ele, Ninguém, Nós), à princípio, individualmente e aos poucos com suas narrativas sendo entrelaçadas.
No primeiro capítulo nos é apresentado o personagem Eu: Um homem em um casebre no meio da mata, rodeado pela natureza e os animais que nela vivem. Indica estar em conflito com o tempo e a memória, já que não consegue mais ter certeza de quanto tempo está naquele lugar "O passado conflituoso me aflige. O futuro insondável me inquieta. E o presente, me pergunto, ora ora, o presente já passou.".
O segundo capítulo tem foco no personagem Tu: Um homem tendo dificuldades em se acostumar com a nova cidade, com o novo apartamento emprestado, e que relembra acontecimentos de forma não linear, os quais o levaram a acabar naquela situação. Morava nas proximidades de Florianópolis e um dia encontrou com o personagem Você, que depois de algumas conversas, o convidou a visitá-lo, caso Tu passasse por Brasília em algum momento da vida. Por ter se envolvido em uma situação de perigo onde morava, Tu acabou indo para Brasília e lá encontrou emprego em um sebo, no qual teve a oportunidade de ver Você novamente e ir morar no apartamento dele sozinho. Também no sebo conheceu Ela, que estava a procura de um livro de Cora Coralina.
Ela é a personagem central do capítulo três: Morava em Goiânia. Seu pai foi assassinado no período da Ditadura Militar, sua mãe não conseguiu superar a morte primeiro marido e afastou o novo, que serviu de pai a Ela enquanto ela crescia. Sua mãe era aposentada, passou a fazer cerâmica e era vizinha e amiga de Cora Coralina. O novo padrasto de Ela era violento e tentou abusá-la, sendo assim Ela arrumou uma mala simples, deixou um bilhete de despedida para a mãe e fugiu para Brasília, com o desejo de trabalhar e cursar História. Já em Brasília conhece o personagem Tu e juntos vão para um encontro.
O capítulo quatro é referente ao personagem Um Outro: Homem casado e com dois filhos, fazendeiro, influente na cidade em que mora e iniciando a carreira política de vereador. Recebe uma proposta tentadora e perigosa e decide por aceitá-la. Ao chegar na rodoviária se despe do manto de pai de família e torna-se O Outro. Teria 6 meses para assassinar uma mulher de cabelos escuros e curtos, alta, esbelta, de olhos azuis, sem dois dedos na mão esquerda e com uma marca no rosto, embaixo dos olhos. Foi para Brasília e no quarto mês à procura de sua vítima, a encontra. Com uma arma calibre 38 atira em Ela.
No capítulo cinco o personagem a ser apresentado é Ele: Detetive de Polícia Civil de Brasília, o qual acabou nesse emprego mais por acaso que por vocação. À pedido da família cursou direito e quando a oportunidade apareceu, fez concurso e foi aprovado. Seu sobrenome o atormentava, já que Fleury foi um dos maiores torturadores da Ditadura Militar Brasileira, portanto usava o sobrenome da mãe quando podia. Ao encontrar a morta, Ela, não estava acompanhada, a não ser por um médico que passava pelo local quando a viu caída e decidiu ajudar. Só se sabia que ela havia ingerido álcool e teve relações sexuais pouco tempo antes de ser assassinada. Na sua pequena bolsa não havia nenhum documento que a identificasse.
O próximo capítulo tem por personagem Ninguém: Ninguém ouviu o tiro; ninguém vira a moça acompanhada; Ela não tinha documentos, portanto era ninguém.
O capítulo final apresenta os personagens Nós: Voltamos ao personagem Eu, em sua cabana, sentado em sua cadeira, de frente para uma resma de papel A4 e rodeado por canetas, se esforçando para dar continuidade à única palavra escrita na página "nós". Eu tenta se distrair de alguma forma, vai a cozinha e ao retornar a sala "encontra" Auguste Dupin, famoso detetive das obras de romance policial de Edgar Allan Poe. Junto deles, os personagens restantes também aparecem na sala a discutem o crime ao mesmo tempo em que pedem mudanças em suas narrativas: Tu explica que não ficou ao lado de Ela depois do tiro por medo de ser preso e ter de responder pelo assalto por terceiros com sua motocicleta em Florianópolis; Um se enfurece por estar ali, já que estava a se tornar vereador, então sai e apresenta sua faceta de O Outro, que viu sua chance e atirou na vítima que mais se parecia com a descrição pedida; Enquanto isso Ele, o detetive comissário, reclama a Eu, seu autor, por não ter recebido um sobrenome comum, como Pereira ou Silva ao invés de Fleury; Ela também suplica a Eu, seu autor, que não continue morta, que receba outro desfecho.
Para concluir, temos o apêndice do livro, onde Dupin diz que não chama Edgar Allan Poe por seu nome completo, apenas por Edgar Allan por ser colega íntimo dele. Sendo assim, todos os personagens de Eu "Tu, Ela, Um Outro, Ele, Ninguém e Nós" são íntimos dele, por não terem nomes completos, inclusive o próprio Eu, íntimo de Salim Miguel, tendo sido criado por ele. O autor do crime, portanto, foi o próprio autor “Eu”, sendo a faceta “Outro” do “Um” Salim Miguel.
Voltamos então para a citação inicial do livro, de Cora Coralina: "Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do Passado antes que o Tempo passe tudo a raso." Salim Miguel, em Nós, reescreveu uma nova história de mistério policial, com base nos tantos autores citados por ele no livro. Tudo é um ato de reescrever, recriar, com base nas leituras, experiências, interpretações dos conteúdos a que somos submetidos ao longo da vida.