Renata CCS 06/06/2018Amores, desamores e a intensa fraternidade em tempos de guerra..
“Um homem nunca sabe quando a guerra acaba. Diz, Olha, acabou, e de repente não se acabou, recomeça, e vem diferente, a puta,
ainda ontem eram floreios de espada e hoje são arrombações de pelouro,
ainda ontem se derrubavam muralhas e hoje se desmoronam cidades,
ainda ontem se exterminavam países e hoje se rebentam mundos.”
- José Saramago (Memorial do Convento).
Em uma cobertura de um quarto de hotel em Copacabana no Rio de Janeiro, totalmente alheia às comemorações de réveillon do ano 2000, a octogenária Olívia Braga de Almeida aprecia uma foto antiga quando é surpreendida por sua neta - também chamada Olívia e apelidada de Tita - que a questiona sobre a foto, nunca antes vista. Na foto, datada de 4 de fevereiro de 1940, sua avó Olívia aparece em uma praça em Antuérpia, jovem e grávida, ao lado de um homem e um menino desconhecidos. Em uma outra foto da mesma época, Olívia está ao lado do marido e do filho que Tita bem conhece. É neste cenário que um segredo de sessenta anos é revelado: Olívia é, na verdade, Clarice, a mulher da foto de Antuérpia, irmã gêmea de Olívia, com quem trocou de identidade em sua fuga durante a Segunda Guerra Mundial. É a partir desse ponto que a história em UMA PRAÇA EM ANTUÉRPIA que passamos a viajar pelo tempo, em uma narrativa não linear, a partir das memórias de Olívia/Clarice. A fotografia da família na praça em Antuérpia remonta episódios da vida de Clarice que faz Tita viajar por gerações e passa a conhecer quem realmente é a sua avó.
Logo no início do livro passamos a ser detentores de um dos fatos principais (talvez o principal) para o desenrolar da história, e é a partir desse ponto que a trama segue buscando os porquês de todo o ocorrido, que levou a troca de identidade entre as irmãs. Engana-se quem achar que essa revelação provoque qualquer desinteresse ao leitor. Ao contrário, o fato apenas aguça o interesse do, pois o enredo é instigante e os personagens extremamente atrativos.
A narrativa é construída de uma forma simples, mas meticulosa e inteligente: são capítulos breves com ganchos impacientes, que nos levam de imediato ao próximo, fazendo com que a leitura ganhe um ritmo mais acelerado. Além disso, a narrativa também apresenta elementos típicos de um texto televisivo, com um poder de descrição quase cinematográfico.
Embora a figura de Hitler seja comumente explorada em obras que tratam da Segunda Guerra Mundial, são outros os personagens históricos que ganham foco na narrativa de Luize Valente: as figuras de António Salazar e Francisco Franco, líderes de Portugal e Espanha, respectivamente, que aparecem em destaque, sendo retratados como figuras relevantes para melhor entender tudo o que ocorre com Clarice e sua família. Outra figura em evidência é a de Aristides Sousa Mendes, um cônsul português que, contrariando as ordens do ditador Salazar, que durante três dias e três noites, concedeu diversos vistos de entrada em Portugal a refugiados, principalmente de origem judaica, que fugiam da perseguição nazista.
Apesar de ser um romance histórico, o que encontrei de mais instigante nessa obra foi o seu não-didatismo, propondo ao leitor que monte as peças de uma estória dentro da História, que envolve tempos e espaços diversos à medida que a leitura avança. Valente consegue transferir os sentimentos dos personagens para o leitor, pois é profunda a relação que sentimos com eles, como se os conhecêssemos desde sempre.
Bem... leitores são um amontoado de experiências e aprendizagem e, por essa razão, sempre lemos uma obra tendo em conta as leituras anteriores. Neste caso, a comparação com outros livros com a mesma temática é inevitável. O ideal seria avaliar este livro sem ideias pré-concebidas, pois é mais que apenas outro livro sobre o holocausto, é uma história de amor incondicional que transformou duas pessoas em apenas uma. Embora tenha um clima novelesco, açucarado e ainda pouco crível em algumas passagens, de forma alguma isso comprometeu a qualidade do livro. O humanismo das situações e o carisma dos personagens nos envolvem e nos levam à outra época, outra realidade, e isso compensa qualquer excesso que possa ter sido cometido.
É um romance daqueles que te pegam pelo braço e leva a outra realidade, mexendo com nossos sentimentos e, mesmo sabendo o final da história logo nas primeiras páginas, torcemos pelos protagonistas como se nossa vontade pudesse fazer alguma diferença no desfecho. Mas é justamente dessa sensação de “tarde demais” que Luize Valente extrai o elemento surpresa para finalizar o livro. Ao término da leitura, fica a tentativa quase insana de impedir que aquelas vidas desapareçam de nossa memória, e seu final trouxe uma paz que eu e a protagonista precisávamos.