Dankar 28/05/2015O Rosto de Um Outro foi o primeiro livro que encomendei logo na pré-venda, pois já ansiava por sua tradução brasileira desde o ano passado, quando vi a primorosa adaptação dirigida pelo Hirsohima Teshigahara e roteirizada pelo próprio Kobo Abe. A verdade é que eu tinha poucas esperanças de que isso acontecesse em breve. A única tradução de um livro do Kobo Abe (que é considerado um dos grandes escritores japoneses do século XX) que existe por aqui é a d'A Mulher da Areia (que também foi adaptado pro cinema por Teshigahara), mas é uma edição muito antiga, lá dos anos 60, de forma que fiquei com muito receio de que a tradução fosse péssima.
E então, um dia, por acaso, vi que a Cosac Naify estava para publicar uma tradução de O Rosto de Um Outro. Por algum tempo, visitei o site da editora diariamente, procurando informações sobre o assunto, e quando o livro finalmente saiu para pré-venda eu não tive outra opção além de comprá-lo na mesma hora.
Apesar de toda minha empolgação, admito que eu tinha um pouco de medo de me decepcionar. Havia a possibilidade de que a obra tivesse sido melhorada na adaptação (é algo raro, mas acontece), ou mesmo de que o livro perdesse força quando já conhecemos seu enredo. Mas o caso não era esse: primeiro porque o filme e o livro possuem focos diferentes, além de algumas diferenças na própria história; e, segundo, porque Kobo Abe é um desses escritores que escrevem tão bem que a narrativa sobrevive com toda sua força mesmo se o lermos com seu enredo decorado do começo ao fim.
O Rosto de Um Outro é um desses casos raros em que filme e livro são obras distintas ao mesmo tempo em que se completam. Algumas das melhores cenas do filme não existem no livro, por exemplo, da mesma forma que os melhores recursos narrativos de Abe (como as longas dissertações do narrador, que funcionam praticamente como estudos sociológicos à parte) seriam intraduzíveis para o cinema.
Kobo Abe faz questão de nos obrigar a manter, durante toda a obra, nossos olhos bem abertos para assuntos como a alienação do indivíduo nos centros urbanos modernos ao mesmo tempo que nos faz sempre ter em mente os ataques de Hiroshima e Nagasaki, cuja memória preenche toda a atmosfera do livro. Durante toda a leitura nos sentimos inevitavelmente perturbados, e, quando chegamos em seu final, não restam dúvidas de que se trata de uma grande obra-prima.
E que venham mais livros do Kobo Abe para o Brasil!
"O Sr. K, dos órgãos artificiais, falara de soldados que perderam o rosto em campos de batalha e se suicidaram, e se tais fatos aconteceram mesmo, eu, que passei a maior parte da minha juventude num país de guerra, conheço-os muito bem. Em nenhuma outra época o preço do rosto caiu tanto no mercado. Nos momentos em que a morte nos parece mais próxima do que nossos companheiros, que sentido teriam as vidas de comunicação com estranhos? Um soldado que avança, baioneta em riste, não precisa de rosto. Realmente, aquela talvez tenha sido a única época em que um rosto envolto de bandagens pareceria belo.
Em minha imaginação, sou um artilheiro e disparo contra tudo o que meus olhos veem. E em meio à fumaça da fuzilaria, eu adormeço."