Fran 23/04/2015
RESENHA O HOMEM DE AZUL E PÚRPURA, por Francélia Pereira.
Após muito pesquisar, após várias reflexões, Tolkien pôde compreender a essência da cultura europeia, com toda a sua diversidade de povos.
Em sua época, povos ancestrais ainda conviviam com a população nova, fruto de diversas disputas, invasões, mestiçagens e trocas culturais, feitas de boa vontade ou não.
A industrialização estava avançando de forma assustadora e Tolkien, com toda a sua sensibilidade, percebeu que o mundo antigo estava se tornando apenas uma lembrança; e antes que essa lembrança se apagasse completamente, ele decidiu registrar em uma obra monumental tudo aquilo que pôde descobrir e compreender sobre os povos europeus. Mas Tolkien não fez isso através de textos científicos, ele escolheu a linguagem da Fantasia para elaborar a sua obra, O Senhor dos Anéis, e a partir da realidade criou um universo paralelo, mascarando e enfeitando aquele mundo.
Talvez inspirado pela genialidade de Tolkien, Vilson Gonçalves fez algo parecido, ou talvez foi por inspiração da mesma Musa que soprou aos ouvidos do grande escritor; mas agora ela entoou uma nova canção, A Canção de Quatrocantos.
Guiados pela Fantasia, Vilson Gonçalves nos convida a viajar no tempo e conhecer o mundo em que viviam os nossos antepassados na América.
Assim como Tolkien, Vilson cria a partir de fatos reais todo um universo com sua magia, seus povos encantados e seu dia a dia que faz a existência parecer uma grande aventura.
No primeiro volume, O Homem de Azul e Púrpura, conhecemos Wayra (vento, em Quechua), um comerciante aventureiro que, através de suas viagens por Quatrocantos, nos mostra toda a magia de um passado que não podemos esquecer.
Nesse primeiro contato com o mundo de Quatrocantos, através da narrativa cativante do autor, entramos nessa realidade; e parece que o que nos aguarda nos próximos volumes são histórias cheias de magia e aventuras, em um contexto que começa a ganhar o espaço que merece na Literatura.
Em O Homem de Azul e Púrpura podemos ver de perto a diversidade de povos da América Ancestral. As guerras, as civilizações, os contatos entre os povos, as lendas, costumes, enfim, todo o passado das terras que hoje chamamos de América é revelado através das descrições do autor; mas não da forma como faria um antropólogo ou um arqueólogo, tudo isso é revelado de forma muito viva, e podemos mesmo sentir os cheiros, os sabores e até a textura das roupas descritas.
O autor criou novos nomes para os povos e localidades, mas algumas características e algumas palavras nos dão a dica da relação entre a fantasia e a realidade. Foram feitas algumas misturas entre culturas diferentes, gerando povos que são fruto da imaginação do autor e, pelas descrições, me pareceu que toda a história desse primeiro volume se passa na América do Sul, tendo como inspiração principal os povos de origem Inca, que vão interagindo com outros povos do continente Sul Americano, mas referências que remetem a construções e à cultura da América Central fortalecem a ideia de que na verdade a ambientação se passa em um universo criado pelo autor.
Talvez um leitor mais exigente sinta-se incomodado com alguns furos na revisão, mas isso não diminui a riqueza do conteúdo apresentado no texto.
A Canção de Quatrocantos é uma série que promete ser inovadora, e já começa muito bem com O Homem de Azul e Púrpura.
DESTAQUES:
"Os wayar acreditavam que a terra era uma entidade viva e caprichosa. Um homem podia trabalhar a vida inteira em um único local e tirar do solo o seu sustento, se o destino permitisse, mas reclamar a posse da terra era algo que só podia ser concebido como loucura, broma ou ainda como uma atitude pretensiosa, irreverente e ofensiva aos deuses. A própria menção de tal disparate poderia causar a fúria de entidades mais fortes que qualquer exército".
Cap. II – Além das Montanhas.
"Há gente que precisa abandonar a terra e se meter no meio da Grande Água para viver. Eles se acham sortudos, dizem que são ricos e que vivem como reis, mas o que isso quer dizer? Viver com a pele cheia de sal e areia, se arriscando no meio de piratas é viver como um rei?
E ser rico a que fim? Um homem perdido em um lugar isolado do mundo, sem terra ou família, sem comida por perto, pode comer pedaços de turquesa ou esmeraldas ou concha-das-ilhas? Que tipo de riqueza é essa? E, no entanto, eles fazem isso. Tudo isso aprece loucura. Mas não podem estar todos loucos.
Ou podem?" – Pukakiru.
Cap. V – Um mundo em uma jangada.