Lucas 16/08/2023
Os limites da humildade foram atualizados com sucesso: a política é sim um instrumento do bem
Um dos personagens políticos mais peculiares que o mundo produziu nos últimos 60 anos é o uruguaio José Alberto "Pepe" Mujica Cordano (1935-), que governou o "paisito", como é carinhosamente conhecido o país ao sul do Rio Grande do Sul, entre 2010 e 2015. Enquanto esteve no poder, Pepe Mujica se notabilizou pela sua humildade assombrosa (o seu Fusca azul era um símbolo disso), que fez dele o "presidente mais pobre do mundo".
Diante de tantas repercussões, ele se tornou extremamente popular em função das suas ideias e comportamentos. Não é raro que se esbarre com alguma colocação ou ensinamento seu enquanto se navega pela Internet. E tal impacto acaba por respingar em livros biográficos, onde um deles serve de base para a presente resenha. Pepe Mujica: Simplesmente Humano é um livrinho curto de menos de duas centenas de paginas escrito por Allan Percy, um escritor norte-americano de livros de autoajuda e Leonardo Díaz, argentino especialista em ciência política. Juntos, eles lançam dois olhares fundamentais ao personagem central da obra: enquanto os primeiros 40% da narrativa se ocupam de tecer um rápido retrospecto da vida política de Mujica até 2015 (ano em que o livro foi lançado), o restante busca extrair reflexões esparsas (e valiosas) de Mujica e fundamentá-las com uma abordagem de desenvolvimento pessoal.
Rótulos como autoajuda, coaching ou desenvolvimento pessoal trazem certo ranço a um determinado grupo de leitores, que não consegue, pelos mais diversos e particulares motivos, se encantar por obras que tratam destes temas (é o caso de quem escreve esta resenha). Mas aqui o que acaba prevalecendo é mesmo o olhar de Mujica para as questões práticas da vida, como a forma com que encaramos as lembranças, o "ser" antes do "ter", a vida em comunidade, um senso minimalista de viver, etc. Um político de esquerda (mas não radical, diga-se, já que Mujica tinha sérias restrições ao comunismo soviético, por exemplo, e encarava com desdém as utopias da doutrina), Pepe Mujica trouxe essas questões para dentro do seu governo, revestindo com uma aura de simpática e não forçada humildade a sua gestão. Estes ensinamentos são especialmente curiosos para nós brasileiros, que, devido a seculares experiências anteriores, atrelamos a imagem de um político à riqueza, ostentação e muitos ocultismos.
O próprio Mujica me condenaria se lesse o fim do primeiro parágrafo dessa resenha. Para ele, a pobreza é um estado de espírito, não um aspecto mensurável em unidades monetárias. Se pudermos viver com pouco, sem desperdícios, estamos contribuindo para o fim das desigualdades sem nem percebermos. O bem mais importante que temos, se é que isso pode ser chamado de bem, é o tempo, e se investirmos nosso tempo e energia em busca de conquistas materiais, estaremos desperdiçando nossas vidas. O tempo é um recurso limitado e se gerirmos ele adequadamente, construindo valores e não coisas, o impacto de nossas realizações ficará por aqui por várias gerações depois que nós, inevitavelmente, nos formos.
O livro se ocupa mais de construir esse tipo de reflexão. A abordagem do político Mujica e os contextos de sua fermentação (ele ficou preso por doze anos entre as décadas de 70 e 80 pela ditadura uruguaia) aparecem, mas de uma forma bastante tímida. Seu mandato, marcado por medidas, "brasileiramente" falando, polêmicas, como a lei do aborto e a liberação do cultivo, comercialização e consumo de cannabis, é comentado em poucas páginas. E apesar disso ser feito com isenção (já que tanto os acertos quanto os erros de Pepe Mujica como presidente são comentados) e com o mínimo de embasamento político, faltou uma maior fundamentação contextual. Mas isso só demonstra um ponto importante: a obra de Allan Percy e Leonardo Díaz NÃO é uma biografia do ex-presidente do Uruguai, tampouco um livro que recorta alguma parte da história desse simpático país e nela se aprofunda.
Pepe Mujica é atualmente um senhor de quase noventa anos e talvez um dos mais ricos homens da América do Sul. Isso porque, já vestido com o seu discurso antimaterialista, ele vem deixando um legado de ótimas histórias e valores, que influenciam a geração atual em todas as suas camadas e que influenciarão as gerações posteriores. Ele é um exemplo de que, sim, a política é uma coisa boa e ela se torna ainda mais fascinante quando despida de toda a camada podre que a reveste, a qual o Brasil conhece e se reconhece tão bem, infelizmente. Estar em contato com seus ensinamentos é, portanto, uma experiência que sempre será válida e o livro de Percy e Díaz cumpre isso através de uma leitura breve e edificante.