o safari da estrela negra

o safari da estrela negra Paul Theroux




Resenhas - o safari da estrela negra


1 encontrados | exibindo 1 a 1


Gustavo Araujo 12/06/2013

Uma viagem para poucos
Heresia suprema para quem gosta de livros e viagens como uma união necessária: eu nunca tinha lido Paul Theroux. O escritor americano nascido em 1941 é uma espécie de mentor filosófico de viajantes há mais de 40 anos. É dono de pelo menos uma dúzia de livros de viagens, além de romances, que têm influenciado gerações de pretensos seguidores desde o lançamento de O Grande Bazar Ferroviário, obra que revelou seus percalços a partir de Londres, passando pelo Oriente Médio, Índia até chegar ao Sudeste Asiático e regressar a Europa pelo Transiberiano.

É possível esse currículo tenha me afetado de forma negativa, talvez até em um nível subconsciente fazendo com que eu simplesmente o ignorasse. O mais provável é que meu velho preconceito contra sumidades tenha falado mais alto. Para que, afinal, ler um livro desses perguntava a mim mesmo , afinal, impressões são só impressões e de nada valem se eu não posso conferi-las pessoalmente.

De alguma maneira, porém, O Safári da Estrela Negra pousou no meu colo. Só aí percebi o tempo que havia perdido. Encontrei o estilo de Theroux em sua plenitude, transbordando observações sarcásticas, honestas e apaixonadamente mau humoradas e preconceituosas, sem a mínima intenção de fazer média com quem quer que seja ou de parecer politicamente correto.

A viagem que deu origem ao livro ocorreu em 2002, quando, à beira dos 60 anos, Theroux viajou por terra do Cairo à Cidade do Cabo, um feito, por si, extraordinário, dado à ausência de transportes regulares e aos perigos e desafios envolvidos.Trazendo consigo apenas uma sacola velha e vestindo roupas surradas, sua intenção desde o início era desaparecer, tornar-se incomunicável, inatingível por celulares ou emails. Tornar-se um fantasma.

A força do livro vai muito além do mero relato de dificuldades logísticas. Na realidade, o que torna a obra irresistível é tanto o afiado poder observação do autor, como, principalmente e esta talvez seja sua melhor qualidade , encontrar pessoas, fazê-las falar, contar suas histórias. São tantos os personagens que cruzam o seu caminho que fica difícil apontar qual o mais interessante. E o mais curioso é que são pessoas comuns, gente ordinária que, sob o estímulo persuasivo do autor, se transformam em protagonistas efêmeros de contos fantásticos. Nada de estereótipos ou nativos coloridos, mas gente cujas palavras se tornam o ponto de partida para que Theroux aborde aspectos históricos e culturais.

Sugestões do tipo: não vá, é perigoso provocam um efeito contrário em Theroux. Aconselhado a evitar o Sudão, não teve dúvidas em seguir para lá. O mesmo aconteceu na Etiópia e no percurso até o Quênia, onde o caminhão em que havia tomado carona foi atacado por bandidos do deserto.

É nesse trecho que se percebe sua franqueza ao escrever. Ele não poupa o leitor, sob qualquer critério, de observações pessimistas quanto à corrupção no Quênia e a total falta de infraestrutura da Tanzânia. A culpa, segundo diz, é menos dos africanos do que daqueles que ele chama pejorativamente de agentes da virtude, as agências humanitárias que atuam na África. Theroux não vê problemas em apontar o dedo para o trabalho desenvolvido por tantas ONGs e afins e classificá-los como o grande motivo pelo qual o continente permanece patinando em um lodaçal de miséria, cenário perfeito para aproveitadores, prostitutas e vigaristas.

Ao chegar a Uganda e depois, no Malaui lugares em que já estivera antes Theroux só confirma essa constatação. Indo além, acusa sem o mínimo pudor missionários religiosos de tentar promover uma lavagem cultural nas tribos mais afastadas. Isso, de acordo com ele, é um dos fatores que leva ao êxodo transformando cidades em favelas que se esparramam pelo horizonte, repletas e doenças, crimes e desesperança.

O que mais o deixa indignado, percebe-se, é como esses missionários evangélicos, principalmente julgam-se os detentores da verdade suprema, sempre ostentando sorrisos de comiseração pelo fato de outros não terem, ainda, encontrado um suposto caminho para a salvação. É o que se deduz de sua conversa bastante amistosa com uma garota em um trem da África do Sul para Moçambique.

Viajando em trens caindo aos pedaços, matatus, micro-ônibus, caminhões, e até mesmo canoas, Theroux leva o leitor à verdadeira África, não àquela vista pelos turistas. Aliás, esse é um rótulo que ele faz questão de dispensar, atacando e ridicularizando com observações deliciosamente sarcásticas aqueles que só vão à África para perturbar os animais.

Mesmo que não se concorde com tudo o que Paul Theroux diz, é possível entrever por suas linhas que o continente africano prima por apaixonantes contradições e por uma complexidade sedutora.

A maior qualidade do livro talvez seja exatamente essa: a franqueza insuperável com que foi escrito. É uma pessoa falando, não uma entidade bíblica ou um professor cansado. É alguém que esteve no local e o experimentou. Não se contentou com estudos apenas, mas foi até lá e viu, com os próprios olhos, daí passando a impressão que o atingiu.

Deixar o leitor desconfortável, em dúvida, questionando-se, é o maior mérito de qualquer escritor. Nisso, Paul Theroux é mestre. Sua viagem termina com um reflexo do paradoxo do continente. Revela-se africanizado, roubado e doente, uma provocação irresistível àquele que lê.
comentários(0)comente



1 encontrados | exibindo 1 a 1


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR