Arsenio Meira 22/11/2013
Além do Segredo
Não bastassem a prosa enxuta e o personagem, "O Segredo de Joe Gould" é agraciado com um excelente posfácio do cineasta João Moreira Salles sobre Mitchell e como ele ignorou a fronteira entre o jornalismo e a literatura.
A ideia de que é preciso escrever bem para ser jornalista paira sobre o senso comum. Mas na correria do dia-a-dia, com o decaimento nas redações de profissionais preparados, somando-se a isso as precárias condições de trabalho dos jornais diários e o sufocamento criativo provocado pelas exigências técnicas do modelo americano adotado no Brasil, o que se vê nas redações é a escrita sendo utilizada apenas como uma ferramenta comunicativa.
O estilo, a criação e a emoção, quando muito, ficam relegados ao segundo plano. O objetivo é passar a informação de maneira rápida, concisa e eficiente, despejando as notícias mais importantes logo no primeiro parágrafo, no chamado lide. Para isso, basta informar o quê? quando? onde? e por quê? de determinado fato.
Raros são os veículos que fogem a esse modelo. Talvez o mais expressivo deles seja a revista The New Yorker, um ícone do jornalismo literário que já abrigou nomes como Truman Capote (A Sangue Frio, Bonequinha de Luxo), J.D. Salinger (O Apanhador no Campo de Centeio), John Hersey (Hiroshima), Vladimir Nabokov (Lolita) e Milan Kundera (A Insustentável Leveza do Ser). O maior mérito da revista, no entanto, não está nas assinaturas deles, e sim na paciência, liberdade e segurança oferecida por ela para conseguir atrair tantos nomes de peso.
Trabalhar na The New Yorker era o sonho de qualquer jornalista que desejasse mais para o seu texto do que servir de embalagem de peixe no dia seguinte. Além do reconhecimento profissional e financeiro, a revista não oferecia barreiras a criatividade dos seus colaboradores com prazos, limites de espaço e padronizações. Não à toa, foi lá que despontou o talento de Joseph Mitchell. Recebendo normalmente um salário anual de US$ 20 mil, Mitchell podia passar dois anos escrevendo uma mesma matéria.
Sem essas condições, dificilmente o mundo ficaria sabendo da existência de Joe Gould, um mendigo boêmio de Nova Iorque que ganhou fama depois de ter seu perfil escrito por Mitchell e publicado em 1942, pela The New Yorker. Em seguida, em 1964, o jornalista publicou outro perfil de Gould, já morto, que juntamente com o primeiro, virou o livro O Segredo de Joe Gould.
É fácil identificar como o autor elimina os limites entre uma coisa e outra. Ao relatar em texto escrito em 1964 sua forma de agir e seu envolvimento com o personagem Joe Gould, foco de um belo perfil publicado 22 anos antes na revista The New Yorker, Mitchell conta como foram a aproximação, a entrevista e a revisão de provas. O encontro com a literatura se dá no momento em que escreve, lenta e cuidadosamente, com incrível respeito ao personagem.
O autor é honesto e corajoso ao recordar o que aconteceu depois da publicação do artigo original. Uma boa penca de repórteres e editores que acreditam no compromisso do jornalista do seu público e com a “verdade” devem ter soltado exclamações, estarrecidos ao descobrir que Mitchell descobriu o segredo do personagem e só o revelou ao público duas décadas depois que a revista publicou seu perfil.
Com um olhar atento para aquelas pessoas que poucos enxergariam uma boa história, Mitchell viu em Gould um ótimo personagem. No primeiro perfil, intitulado O Professor Gaivota, ele descreve um Gould excêntrico, cheio de manias. Um velho bêbado bom de papo, que freqüenta as rodas de artistas nova-iorquinos, diz saber a língua das gaivotas, carrega um saco com guimbas de cigarro achadas na rua e que já foi repreendido em lanchonetes pelo seu hábito de comer ketchup.
Entre as façanhas que marcaram a vida de Gould, estavam o fato de ter medido a cabeça de mil índios na Dakota do Norte e o seu livro ainda não terminado Uma história oral do nosso tempo. Nele, o boêmio pretendia escrever os relatos de pessoas comuns que ouvia nas ruas, no metrô, nos bares e restaurantes. A idéia era registrar aquilo que passaria desapercebido pela versão oficial da História.
Mas o que importa é a sequência, perlustrada pelo artigo que dá titulo ao livro, que revela o senso crítico de Mitchell, bem mais apurado. A imagem peculiarmente engraçada de Gould é desconstruída. Ele passa a ser mostrado como ele realmente era, sem rodeios, sem delongas.
Em meio a um misto de descrença e fascinação pelo personagem, Mitchell manteve uma relação de amizade (às vezes indesejada) com o boêmio até o fim da vida. Ao contrário do que acontece na primeira parte, Mitchell se coloca de vez no texto e conta todo o processo de feitura dos perfis. É nessa revelação dos bastidores – como surgiu a ideia de escrever sobre Gould, a repercussão do Professor Gaivota, a investigação sobre a existência de Uma história oral do nosso tempo – que se percebe realmente o trabalho de Mitchell. Nem tanto pela escrita, mas pela paciência no esforço de apuração, lealdade e cuidado com as informações que está passando.
Mesmo depois da sensação ao descobrir o segredo a que se refere o título do livro, o jornalista continuou a se dedicar a Gould, recebendo-o em seu escritório e ouvindo pacientemente suas histórias. Talvez essa relação só tenha durado, justamente pelo fato de ambos enxergarem beleza na insignificância das pequenas coisas.