Renan Barcelos 07/10/2016
Um Vampiro em Busca de Recuperar sua Humanidade
A história de Louis, Lestat e de outros seres das trevas que foi iniciada em Entrevista com o Vampiro foi finalizada com um ótimo desfecho em A Rainha dos Condenados. Todos os ganchos haviam sido fechados e nenhuma ponta solta parecia restar. Contudo, Anne Rice não terminou aí as suas famosas Crônicas Vampirescas; quatro anos depois, após flertar com outros temas sobrenaturais em Hora das Bruxas, deu seguimento à série com A História do Ladrão de Corpos.
À primeira vista, a sequência parece fora de propósito, sua própria existência lançando a pergunta de se existe necessidade, e, mais do que isso, assunto, para voltar a explorar a não-vida e a psique do vampiro Lestat. A autora, sim, consegue trazer uma obra que justifica a própria existência e, apesar de parecer muito com um spin-off, traz detalhes e situações interessantes para as crônicas. No entanto, a despeito do que ela – e o vampiro Lestat – afirmam, o livro só pode ser aproveitado por quem já leu as obras anteriores.
A História do Ladrão de Corpos se passa alguns anos após A Rainha dos Condenados, e como se tornou hábito desde o segundo livro das Crônicas Vampirescas, o protagonista e narrador é o vampiro Lestat. Mais do que isso, novamente a autora apresenta um livro que é escrito pelo próprio personagem, como uma peça de autobiografia ficcional – estilo que, nas mãos de Rice, tem todo um charme. Sanguessugas já apresentados em livros anteriores novamente aparecem, como Louis e Marius, mas a comunidade vampírica não é o tema da obra. Enquanto desfruta de seus poderes, lamenta e regozija da própria maldade e a da condição vampírica e discursa sobre Deus e o Diabo, Lestat descobre a existência de um homem chamado James Laglan, um humano capaz de trocar a alma de dois corpos. Diante da oportunidade de voltar a experimentar as sensações de um mortal e – talvez – de até mesmo alcançar a redenção, o vampiro não poderia deixar de aceitar tal “acordo com o diabo”, e decide aproveitar a oferta, desde que seu próprio corpo, vampírico e super-poderoso, fosse devolvido dentro de vinte e quatro horas. Padecendo do próprio orgulho, Lestat não imaginou o óbvio, que Laglan nunca pretendeu devolver a ele sua carne imortal.
Apesar de parecer óbvio o mau negócio que o vampiro estava fazendo, Rice conseguiu criar uma situação, uma verdadeira armadilha para Lestat, em que ele não poderia deixar de arriscar a oferta. James Laglan é um trapaceiro hábil, e consegue seduzir o protagonista não com riquezas ou poder, mas pela fraqueza do corpo de um ser humano, uma experiência que, em toda sua não-vida, Lestat jamais poderia experimentar. E é justamente devido a sua personalidade intempestiva, egocêntrica e cruel que ele resolve aceitar o acordo. O próprio bebedor de sangue mais de uma vez fala como ele vê a si mesmo como um herói, não no sentido de alguém que promove o bem e derrota malfeitores, mas como um protagonista garboso, refinado, poderoso e invencível. Para o vampiro rockstar, não teria como as coisas saírem errado, pois ele, e mais ninguém, era o vampiro Lestat.
Entretanto, a busca que se segue, do vampiro em corpo humano para reaver o que é seu e se vingar de Laglan, não chega a ser tão interessante quanto outras partes do livro. Apesar de se chamar A História do Ladrão de Corpos, a troca de almas e o roubo acabam ficando um pouco em segundo plano, com a busca de Lestat por recuperar o que perdeu ocupando menos da metade do livro. Ainda assim, é o ladrão de corpos que marca os acontecimentos e temas que são utilizados na história. É como se a existência de James Laglan e seu encontro com Lestat fossem apenas um artifício para criar motivos para um novo livro sobre a (não) vida do vampiro rockstar e justificar algumas das discussões filosóficas dos personagens e explorar um ponto de vista que ainda não havia sido abordado nos livros anteriores.
Fosse outro tipo de história e tivesse uma outra narrativa que não o estilo de “autobiografia ficcional” é bem possível que as conversas e discussões tidas por Lestat, que ocupam se não a maior, ao menos boa parte do livro, poderiam ser um tanto enfadonhas. No entanto, nas mãos de Rice, e aos olhos de um leitor veterano de suas obras, deve-se se salientar, cenas como o vampiro conversando com seu amigo humano da organização que estuda fenômenos sobrenaturais, a Talamasca, ou então se lamentando e agredindo verbalmente Louis – protagonista de entrevista com o vampiro – têm todo um atrativo.
Ainda assim, o brilho da obra está não nos momentos de diálogo, mas sim nas passagens de introspecção em que o vampiro Lestat está redescobrindo como é ser e se sentir humano. Todas as sensações boas e ruins que ele havia esquecido, e como para ele, que já há duzentos anos era imortal, se manifestam a fragilidade e a mortalidade da condição humana. Talvez existam alguns exageros da parte de Rice, mas mesmos esses momentos parecem condizentes com a afetação e a pompa de Lestat. Neste período de experiência em corpo alheio, o vampiro também flerta com temas bastante reconhecíveis ao ser humano, como as discussões do que configuram o eu e a própria identidade, além de ideias mais próprias à tragédia e ao eterno confronto do bem e do mal, como a possibilidade de redenção – talvez um dos maiores desejos do personagem.
É interessante notar que, apesar de ter toda a cara de um spin-off e ser completamente alheio às histórias passadas, o livro acaba fechando um ciclo com Entrevista com o Vampiro e O Vampiro Lestat. No primeiro, o protagonista Louis mostra como foi a sua vida, a existência do vampiro mais humanizado e mais detrator de sua condição, enquanto no segundo Lestat toma a dianteira, mostrando como é um ser sobrenatural arrogante e orgulhoso que aceita e adora a sua condição. Já em a História do Ladrão de Corpos, há o ponto de vista do vampiro nato que buscou explorar novamente o ser humano e talvez buscar a própria salvação. E é por isso mesmo que, apesar da qualidade da obra, apesar do próprio Lestat dizer que ela pode ser lida por qualquer um, esta história de Anne Rice não tem apelo nenhum aos leigos no universo ficcional da autora. Os que já são íntimos de Lestat, Louis e companhia, contudo, dificilmente se arrependerão de mais uma vez se embrenhar nas Crônicas Vampirescas.
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