Cesinha 30/06/2016
Alguns excertos
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“A consciência e a concepção de que as formas atuais da propaganda moral – o romance – não são formas de criação poética, mas composições puramente retóricas” → negavam qualquer valor estilístico ao romance, tratavam-no como pura propaganda moral.
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Toda prosa literária e romance tem estreito parentesco genético com as formas retóricas. O discurso do romance tem sua originalidade qualitativa e é irredutível ao discurso da retórica. O romance é um gênero literário. O discurso romanesco é um discurso poético mas se restringe simplesmente no âmbito poético.
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Em cada momento concreto de sua formação, a língua é estratificada em camadas de dialetos e linguagens socioideológicas (linguagens de grupos sociais, profissionais, gêneros, linguagens de gerações). A própria linguagem literária é apenas uma das linguagens do heterodiscurso, que também está estratificada em linguagens. Essa estratificação é tanto a estática como a dinâmica da linguagem. A enunciação é o equilíbrio dinâmico entre as forças centrífugas e forças centrípetas dos estratos da linguagem.
Enquanto as variedades básicas de gêneros literários se desenvolvem no curso das forças centrípetas unificadoras e centralizadoras da vida verboideológica, o romance e os gêneros de prosa literária que gravitam em torno dele formam-se historicamente no curso das forças centrífugas descentralizadoras.
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O discurso, ao abrir caminho para o seu sentido e a sua expressão através de um meio verbalizado pelas diferentes dicções do outro, entrando em assonância e dissonância com os seus diferentes pode enformar sua feição e o seu tom estilístico nesse processo dialogizado.
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Com o prosador ficcional o objeto começa por revelar uma variedade heterodiscursiva social de seus nomes, definições e avaliações. Em vez da plenitude virginal e da inesgotabilidade do próprio objeto, revela-se para o prosador a diversidade de vias, caminhos e sendas nele estendidos pela consciência social. Ao lado das contradições internas do próprio objeto, revela-se ao prosador também o heterodiscurso social em torno dele, aquela mescla babilônica de línguas que passa em torno de qualquer objeto: a dialética do objeto entrelaça com o diálogo social em torno dele. Para o prosador, o objeto é o ponto de concentração de vozes heterodiscursivas, entre as quais deve ecoar também sua própria voz; essas vozes criam o campo necessário para a voz do prosador, fora da qual os matizes de sua prosa ficcional são imperceptíveis, “não ecoam”.
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Na vida real do discurso, toda interpretação concreta é ativa: familiariza o interpretável com seu horizonte concreto-expressivo e está indissoluvelmente fundida com a resposta, com a objeção-aceitação motivada (ainda que implícita). Em certo sentido, o primado cabe exatamente à resposta como princípio ativo: cria o terreno para a interpretação, um apresto ativo e interessado para ela. A interpretação só amadurece na resposta. A interpretação e a resposta estão dialeticamente fundidas e se condicionam mutualmente: uma é impossível sem a outra.
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Na maioria dos gêneros poéticos (no sentido estrito do termo) não se emprega artisticamente a dialogicidade interna do discurso, ela não integra o “objeto estético da obra”, ela extingue-se convencionalmente no discurso poético. Já no romance, a dialogicidade interna se torna um dos elementos mais substanciais do estilo prosaico e aqui passa por uma elaboração artística específica.
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O universo da poesia, não importa quantas contradições e conflitos indissolúveis o poeta tenha aí revelado, é sempre iluminado por um discurso único e indiscutível. As contradições, os conflitos e as dúvidas permanecem no objeto, nas ideias, nas vivências, em suma, no material, mas não se transferem para a linguagem. Em poesia, a palavra referente a dúvidas deve ser indubitável enquanto palavra.
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Assim age o poeta. O prosador romancista trilha um caminho inteiramente diverso. Acolhe em sua obra o heterodiscurso e a diversidade de linguagens da língua literária e não literária, sem enfraquece-las e até contribuindo para o seu aprofundamento (pois contribui para a consciência isoladora das linguagens). Com base nessa estratificação da língua, em suas potencialidades heterodiscursivas e até em suas múltiplas linguagens ele constrói o seu estilo, mantendo aí a unidade de sua personalidade criadora e a unidade (é verdade que de outra ordem) do seu estilo.