Antonio Luiz 15/03/2010
Economia à Frankenstein
Já em 1897, Durkheim mostrou em "O Suicídio" como estruturas sociais e econômicas condicionam decisões íntimas, mas em 2005 essa noção parece cair, ao menos sobre os leitores da dupla formada pelo economista Steven Levitt e pelo jornalista Stephen Dubner, como uma revelação genial e ousada.
Seu texto mais polêmico, “Onde foram parar todos os criminosos?” procurou mostrar como as razões da “sabedoria convencional” são insuficientes para explicar a queda da criminalidade nos EUA dos anos 90.
A redução do desemprego, o aumento da aplicação da pena capital, as mudanças (tanto restritivas quanto permissivas) nas leis sobre armas e o envelhecimento da população são pouco relevantes, o aumento do encarceramento explica uns 30% da queda, o reforço do policiamento 10% e o barateamento do crack (por reduzir os conflitos entre gangues) 15%. O fator mais importante, conclui, foi a queda da natalidade entre mulheres pobres, jovens e solteiras desde a liberação do aborto em 1973 e a conseqüente redução do número de jovens marginalizados, duas décadas depois. A conclusão é plausível, ainda que superficial: muito mais fundamentais são as razões que empurram para o crime os filhos de tais mães.
Por razões óbvias, o artigo foi atacado tanto por religiosos quanto por liberais. Ao tentarem responder, os autores cometeram uma emenda que até o prefaciador da edição brasileira de "Freakonomics", Cláudio Haddad, julgou pior que o soneto. A um ensaio sociológico (até certo ponto) defensável, acrescentaram um disparate pseudo-econômico. Atribuíram a um recém-nascido o “valor” de 100 fetos. Assim, o 1,5 milhão de abortos anuais nos EUA “equivaleria” a 15 mil mortes, mais que a redução no número de homicídios supostamente proporcionada por eles.
O mantra de Levitt – “o moralismo representa a forma como as pessoas gostariam que o mundo funcionasse, enquanto a economia representa a forma como ele realmente funciona” – implica identificar sua especialidade com a totalidade da ciência. Ou, pelo menos, das ciências humanas: em entrevista à revista Veja de 16 de novembro admitiu que “outras ciências têm contribuições importantes... como a neurociência ou a biologia evolucionista”.
Interessante. Na prática, seus momentos mais curiosos são os que fazem uso de sociologia – ainda que tosca e superficial – enquanto as referências à economia propriamente dita rendem tropeços e banalidades.
O primeiro capítulo do best-seller – “O que os professores e os lutadores de sumô têm em comum?” – abre-se com a discussão de uma experiência em creches de Israel. Um par de economistas sugeriu uma solução para o problema dos atrasos dos pais em recolher as crianças – multá-los em US$ 3 a cada atraso – e a testaram. O número de atrasos passou de oito para vinte por semana.
Foi um erro, concluem os autores, substituir um incentivo moral por um incentivo econômico: ao serem intimados a pagar a multa, os pais se isentaram de culpa e passaram a julgar o atraso algo bem menos grave. Algo parecido se dá na doação de sangue: é desestimulada, verificou-se, quando retribuída também por uma pequena remuneração e não por simples elogios pelo altruísmo.
As “doações” provavelmente acabariam por aumentar se o incentivo econômico fosse realmente substancial, mas outros problemas surgiriam: se um litro de sangue se tornasse tão valioso, muitos procurariam obtê-lo na ponta da faca. Outros “doariam” acima dos limites seguros, fraudariam atestados de saúde ou mesmo tentassem vender sangue de animais.
Tão sensato quanto pouco economicista. Mas a coerência não é um dos pontos fortes de Levitt: na entrevista à "Veja", aplaudiu propostas do colega Richard Posner de permitir a compra e venda de crianças abandonadas e de órgãos humanos, apesar de os riscos serem obviamente análogos, se não mais graves.
Outro artigo, “Por que, afinal, devemos votar?” (jornal Valor, 20 de novembro de 2005), comenta que ir à cabine eleitoral (em um país onde o voto não seja obrigatório, bem entendido) é embaraçoso para qualquer economista que se preze: um desperdício de tempo, esforço e oportunidades, pois um voto individual não afeta, na prática, o resultado final: “um indivíduo racional deveria abster-se de votar”.
Levitt levanta hipóteses para explicar por que votamos: talvez acreditamos erroneamente que afetaremos o resultado, ou votemos pelo direito de fantasiar que isso terá algum impacto nas políticas governamentais, ou ainda para não sentir a culpa de faltar ao dever cívico. Por fim, adere à explicação da colega Patricia Funk: votamos para sermos vistos a cooperar com a comunidade – algo supostamente provado pela queda da participação eleitoral na Suíça quando se permitiu o voto por correspondência, visando reduzir o “custo” de votar.
Esta interpretação ignora questões óbvias. Se a boa opinião de outros é o único ganho percebido, por que outros suíços continuam a votar? Ou por que porcentagens maiores votam espontaneamente em várias grandes cidades de outros países, nos quais as sanções informais por não ser visto numa cabine eleitoral são insignificantes?
Os suíços diminuíram sua participação só por não haver ninguém para ver se cumpriram ou não seu dever cívico? Ou porque a nova modalidade banalizou o ato de votar, ao extinguir o rito tradicional de ir à seção eleitoral e comentar a eleição com os vizinhos? E por que a participação geralmente aumenta, em qualquer país de voto facultativo, quando há escolha entre alternativas cujas diferenças podem parecer decisivas e diminui quando todos os candidatos ou partidos eleitoralmente viáveis se mostram muito semelhantes?
Tanto do caso das creches quanto das urnas, pode-se concluir quase o contrário do que Levitt apregoa: em certo sentido, a economia neoclássica representa o modo como os economistas ortodoxos gostariam que o mundo funcionasse, mas muitas vezes é a “moral” que dita como ele realmente funciona.
Não uma moral filosófica e abstrata: uma simples solidariedade de grupo (que pode, ao mesmo tempo, ser egoísmo de classe). A capacidade humana e racional de pensar não do ponto de vista estritamente egoísta e individualista do “homem econômico racional” da teoria neoclássica, mas como membro de uma comunidade, território, etnia, classe social ou corrente política, que é capaz de compreender como a soma de atos individualmente irrelevantes tem conseqüências para sua categoria e, através dela, para o próprio indivíduo.
De volta a "Freakonomics", “O que faz um pai ser perfeito?” trata da irrelevância estatística, para o sucesso escolar, de muitos fatores de ansiedade de pais e educadores: o quanto a criança assiste à televisão, se vai a museus, se apanha dos pais, se estes estão separados, se estes lêem para a criança, se a mãe trabalha fora... Muito mais decisivo é o nível socioeconômico e o grau de instrução dos pais – nas palavras de Levitt, não o que “fazem”, mas o que “são” (ou “têm”?).
Verdade. Mas não novidade, para um leitor com alguma informação sobre sociologia da educação – mesmo restrita à orelha do clássico "A Reprodução", de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron: exceções à parte, a classe social condiciona o sucesso dos filhos mais que qualquer esforço pessoal. O que lhe causaria espécie seria a assimilação da “perfeição” dos pais às notas dos alunos. Será essa a sua responsabilidade mais importante?
Mas Levitt dirige-se a leitores formados na cultura da auto-ajuda e na ingênua fé na onipotência da vontade. Faz-se rei em terra de cegos ao vender noções batidas de pensamento sociológico e fazê-las passar por pensamento econômico original. Confundir economia com ciências sociais parece ser a chave de sua prestidigitação: permite-lhe deter a análise no ponto que lhe convém, camuflar complexidades e contradições e evitar questionamentos inevitáveis em outras disciplinas.