jota 22/02/2019Os peixes-banana e outras criaturas salingerianasNove Estórias (1953) tem muito mais a ver com outro livro de J. D. Salinger (1919-2010), Franny e Zooey (1955), do que com sua obra mais conhecida, O Apanhador no Campo de Centeio (1951), de leitura bastante fácil e agradável. As histórias de Nove Estórias têm, por vezes, diálogos enormes, são complexas (suas entrelinhas dizem muita coisa, é preciso ficar atento o tempo todo), podem terminar abruptamente, surpreendendo o leitor e até mesmo deixá-lo em estado desconfortável ao final da leitura. Salinger não entrega tudo gratuitamente: pode ser que seja necessário reler alguns trechos e mesmo pesquisar sobre ele e seus contos. Assim, ficar indiferente às suas histórias é o que certamente não ocorre aqui. Eis-las, resumidamente (bastante):
Um Dia Ideal para os Peixes-Banana: os títulos das histórias de Salinger são assim mesmo, estranhos. Por conta de seu impactante final e certas revelações sobre os personagens, o conto mais célebre deste volume deveria ter sido editado por último e não ser o primeiro que lemos. Mas vamos lá: é preciso ter cuidado com a febre da banana, que mata os peixes-banana. Ela é perigosa também para humanos, pode ser fatal, e Seymour Glass (“see more glass” ou “viu mais vidro”), um dos personagens principais, a teve...
Tio Wiggily em Connecticut: baseado neste conto o cineasta Mark Robson dirigiu, em 1949, My Foolish Heart (no Brasil, Meu Maior Amor). Tio Wiggily é um velho coelho, um personagem de histórias infantis - citado na longa conversa entre duas amigas de escola durante um reencontro depois de muitos anos -, que pouco tem a ver com o restante da trama. Seguem-se confissões sobre o passado, frustrações do presente, uma tremenda bebedeira e um final repentino.
Pouco Antes da Guerra com os Esquimós: Frank é quem fala sobre essa guerra que nunca houve. Ele é um dos quatro personagens principais do conto – os outros são seu amigo Eric, mas principalmente as amigas Selena, irmã de Frank, e Ginnie. Selena é rica, mora numa mansão; Ginnie é classe média, mas é quem sempre paga o táxi de volta das aulas de tênis e quer ser ressarcida pela amiga. Mas aí ela conhece Frank, fica mais interessada nele do que na dívida de Selena...
O Gargalhada: narrativa incrível inventada por um tal Cacique, contador de histórias, que deixa maravilhado o narrador, então um garotinho de nove anos em 1928, agora relembrando aqueles dias. Pudera, o Gargalhada tinha o dom, ou habilidade, entre muitas outras, de atravessar diariamente a fronteira Paris-China, isso mesmo! É uma história (maluca) dentro de outra, tudo tornado muito interessante pelo craque Salinger. Quarto conto que mais apreciei.
Lá Embaixo no Bote: Lionel, garotinho de quatro anos, sobrinho de Seymour Glass, costuma ouvir sorrateiramente a conversa das empregadas e também fugir de casa de vez em quando. Está refugiado no barco semiabandonado da família, e a mãe vai conversar com ele. A certa altura, conta a ela que ouviu uma das empregadas dizer que o patrão, o pai de Lionel, era um gringo nojento (quer dizer, judeu). A tensão existente na relação crianças - adultos também está presente na história final, Teddy (se bem que ele é mais do que simplesmente uma criança).
Para Esmé, com Amor e Sordidez: soldado americano em Londres (que tem algo do próprio Salinger), durante a II Guerra Mundial conhece Esmé numa casa de chá, também seu pequeno irmão, Charles. Esmé e o irmão são crianças notáveis (ou adoráveis); ela conversa com o soldado sobre assuntos do mundo adulto, a guerra, a vida deles (ela é órfã de pai e mãe) etc., e quando ele diz que pretende se tornar escritor depois do conflito, Esmé então lhe pede não uma história infantil, mas que ele escreva um conto realista, que tenha sordidez, como é sórdida a guerra... Para mim, este é o segundo melhor conto de Nove Estórias.
Lindos Lábios e Verdes Meus Olhos: Arthur telefona para a casa de Lee e pergunta ao amigo se ele viu quando Joanie, sua mulher, saiu de uma festa em que estavam e com quem. Lee desconversa; está na cama com uma mulher, mas nada diz a Arthur sobre isso. Seria ela Joanie? Parece que sim... Desligam; depois, há uma segunda chamada e agora Arthur diz que a mulher chegou em casa há pouco. O título é parte de uma “bosta de um poema”, que Arthur escreveu quando começou a sair com Joanie: palavras dele. Entendeu a situação?
A Fase Azul de Daumier-Smith: o narrador, sob o pseudônimo de Daumier-Smith, foi contratado por uma escola canadense de arte por correspondência; na verdade são somente três professores, ele, o dono japonês e sua mulher. Lá, em vez de ensinar desenho e pintura, em troca de um parco salário, comida e cama (nada boas, por sinal), apenas corrige as cartas que o dono escreve para os alunos e lhes dá conselhos para se aperfeiçoarem etc. Ele diz que Picasso era amigo de sua família e outras mentiras. Mas é extremamente convincente, verdadeiro, quando conhece o trabalho de uma tal irmã Irma, enclausurada num convento. História bem humorada, com início, meio e fim, que parece destoar um pouco das demais do volume mas não. Terceiro melhor conto na minha opinião.
Teddy: o conto que encerra o volume traz um garoto de 10 anos (mais pai, mãe e irmã menor) em viagem de navio regressando da Europa para os Estados Unidos. Teddy não apenas se revela superdotado como também possui faculdades mentais e espirituais que o tornam uma celebridade, um objeto de estudo para cientistas. Ele é ao mesmo tempo um gênio e um iluminado. O que ele pensa sobre diversas coisas, sua filosofia de vida, está demonstrada num longo diálogo que mantém com um homem de cerca de 30 anos, também passageiro do navio. Resumo da viagem: é Salinger falando o que pensa através de Teddy.
Lido entre 13 e 21/02/2019.