Felipe - @livrografando 15/11/2020
A mestra que conta histórias (e é a própria Picoult)
A Menina que Contava Histórias é uma quebra de um hiato de oito anos em relação à abordagem do Nazismo nas tramas, desde 2012, com a primeira leitura de A Menina que Roubava Livros. Um livro bem construído, bem concatenado, com uma trama bem amarrada, bem planejada e cheia de camadas poucos personagens, além do texto magnífico e excelente de Picoult, A Menina que Contava Histórias apresenta ao leitor uma experiência muito além das expectativas, com perspectivas ousadas e diferentes, fugindo dos clichês, tendo como mote o perdão nas relações humanas e, de quebra, trazendo uma perspectiva e uma abordagem muito ousada sobre o Holocausto.
A trama narra a história de Sage, uma garota que, após ficar órfã de pai e mãe, tendo como família sua avó, Minka, e suas irmãs, Pepper e Salomon, busca como refúgio trabalhar em uma padaria chamada Pão Nosso de Cada Dia, dirigida por Marge, apelidada de Mary, a qual muito ajuda no processo de recuperação da perda recente da mãe de Sage. Além de ser proprietária do estabelecimento, Mary é facilitadora de um grupo de luto, havendo reuniões ao longo da semana. É durante esses encontros que ela conhece Josef Weber, um simpático senhor de mais de noventa anos de idade, com quem travará uma amizade.
Esta amizade será completamente abalada após Josef fazer uma confidência a Sage, a qual consiste em revelar que ele foi um criminoso de guerra na época do Nazismo e, ferrenhamente, colaborou para o sistemático extermínio de judeus, mostrando para a jovem uma fotografia do outrora jovem soldado, sorrindo para a câmera, se orgulhando do que fazia. A princípio, Sage fica consternada e pensa em negligenciar o que se sucedeu, porém, como pertence a uma família judaica, embora ela não se considere uma judia, Sage buscará meios para empurrar o até então indefctível idoso Josef Weber para a condenação, em razão de suas atrocidades contra a população judaica, realizando descobertas com a ajuda de Leo Steiner, peça fundamental para as reviravoltas na trama.
A edição do livro é relativamente simples, com uma capa que não diz muito sobre a história, no entanto, quanto a diagramação o produto é muito bem feito, o que entrega uma boa experiência ao leitor. Confesso que foi um pouco decepcionante ter como letra uma fonte mais comum do Word, e digo que foi nesse momento que o texto da trama, decaiu um pouco no ritmo, mas confesso que isso é só uma questão particular, não necessariamente a mesma sensação pode ser causada em qualquer leitor. Fora isso, a diagramação é muito boa e os capítulos não se alongam muito, entregando uma fluidez na leitura.
O texto de A Menina que Contava Histórias, sem dúvida, é o ponto alto da questão física da obra. Um texto de altíssima qualidade, aliada à dinamicidade da história e da construção de personagens, além de diálogos muito primorosos e de descrições que evidenciam que Picoult realmente é dotada de uma veia narrativa sem igual. A parte que Minka conta toda a sua história de vida, que leva uma boa parte útil da narrativa, poderia facilmente cair no marasmo, na chatice, mas Picoult é tão hábil na arte de elaborar histórias que as quase 180 páginas são escritas com muita perfeição, em nada dimuindo o nível da história (e essa parte em especial levei quase 10 dias para atravessar, porque apesar de detalhes muito minuciosos, a autora queria mostrar a habilidade de narrar que essa personagem possuía).
É importante destacar que o texto não privilegia apenas a Sage, protagonista da trama, como é de praxe acontecer, mas praticamente todos os personagens possuem falas que ajudam bastante na construção da história, como Marge, que possui uma função de auxiliar Sage em suas decisões, sua conselheira, além de ser facilitadora do grupo de luto do qual participa.
A estrutura narrativa do livro se baseia em quatro pontos de vista: Sage, Leo, Minka e Josef, todos eles representando quatro pontas de um fio entremeado: o Holocausto. Todos eles possuem um ponto de vista diferente em relação a investigação que, em determinado momento da trama, se inicia: Sage, por ter empatia com o sofrimento de sua avó, apesar de ela não se identificar com a religião judaica; Leo, que será o principal elemento que conduzirá a investigação, imprimindo nessa busca um olhar policial; Minka, por ser a vítima do Holocausto, contando sua história de vida, inclusive dentro dos campos de concentração onde foi confinada e Josef, que representa o olhar do torturador, sendo um diferencial muito significativo em se tratando de histórias literárias que tenha como pano de fundo o Nazismo.
Ainda que o clichê de o Nazismo ser utilizado como porta-voz do passado para a revelação de segredos apareça na trama, sintomática em histórias desse tipo, deve-se ponderar a proposta da trama: a história principal tem como argumento o perdão e a redenção e os seus limites. Nesse sentido, é fundamental a presença da perspectiva do torturador, porque assim ele apresentará suas justificativas e razões (embora nada possa justificar, do ponto de vista humano, tal atrocidade). Devo ressaltar que o texto da autora não nos permite fazer um juízo de valor, se ela julga tal personagem, tamanho realismo ela imprime neles, sendo assim, chegamos ao ponto de destacar alguns deles.
Como já falei anteriormente, cada personagem possui um lugar muito característico dentro da trama de Picoult, fugindo do clássico binômio vilão x mocinho. Além de serem personagens carismáticos, de fácil identificação com o leitor, a autora imprime um certo realismo em cada um deles, sendo importante destacar a figura de Josef, descrito como cidadão exemplar, pacífico, tranquilo, mas que na verdade, esconde um passado muito obscuro, o que torna o personagem um indivíduo cheio de camadas, mostrando não apenas o lado bom do ser humano, mas também o mau. Também é digno de nota a própria protagonista Sage, não apenas por ser a personagem principal em si, mas também por conta de suas ações. É amante de um homem casado, mora sozinha e trabalha em uma padaria, além das observações e diálogos que Picoult constrói para a personagem, de um primor sem igual, evidenciando que Sage é um tipo humano comum, cotidiano, e não um personagem totalmente quimérico.
Minka, de fato, A Menina que Contava Histórias (embora a protagonista seja Sage, sua neta), é uma escritora nata, sendo descrita pela história como uma pessoa que poderia competir de igual para igual com Stephen King. A personagem compõe a história para mostrar não apenas seu dom de narrar e elaborar histórias, mas por ser o objeto da investigação contra Josef, uma vez que Sage começa a desconfiar que talvez o idoso tenha sido o algoz de sua avó durante o tempo em que ficou confinada no Holocausto.
A temática do livro possa parecer talvez um pouco previsível, porque busca abordar questões da vida, como o perdão, a redenção, a culpa, as marcas de um passado obscuro, assuntos exaustivamente utilizados em trocentos romances como eixos condutores da narrativa. No entanto, Picoult se diferencia porque ela ousa em abordar essas temáticas por outro ângulo, mostrando o que o perdão significaria para o perpetrador dos indesejados do Reich e a autora também vai mais além, buscando retratar o cotidiano de um campo de concentração, as rotinas de violência e maus-tratos, mas também uma rotina de sociabilidade, ressignificando laços de amizade, como entre Minka e Darija. Sem dúvida, um tiro certeiro da autora e que elevou o livro a um altíssimo nível de qualidade de narrativa, em meio a abordagens de temas tão pesados e cruéis.
Com uma narrativa muito bem elaborada e construída em termos de texto, de tramas, de personagens, de estrutura narrativa, A Menina que Contava Histórias, sem dúvida, é um daqueles livros que, se você lê de forma minuciosa, a história fica grudada na sua mente (um clichê dizer isso, mas é a minha opinião). A forma como Picoult constrói e escreve os seus diálogos a torna uma das maiores escritoras da atualidade e uma mestra na arte de contar histórias, assim como a sua própria Minka.