Flávia Menezes 18/05/2023
? VOCÊ ME TEM FÁCIL DEMAIS?
?Um Bonde Chamado Desejo?, do dramaturgo estadunidense Tennessee Williams, é uma peça teatral que estreou na Broadway em 3 de dezembro de 1947, e que se manteve em cartaz até 17 de dezembro de 1949, rendendo ao seu autor um Prêmio Pulitzer em 1947.
Foram muitas as adaptações feitas dessa peça, porém a mais famosa foi a do filme homônimo de 1951, dirigido por Elia Kazan, e que concedeu a atriz Vivien Leigh um Oscar de Melhor Atriz por sua interpretação de Blanche DuBois.
Trazendo temas fortes como à loucura, o suicídio, a violência doméstica, o abuso sexual, o alcoolismo e a homossexualidade, que era considerada um verdadeiro tabu naquela época, essa é uma peça considerada um clássico da dramaturgia universal, muito embora seu conteúdo possa trazer alguns desconfortos.
Antes de falar da história, acho importante trazer um pouco dos dramas pessoais da vida de Thomas Lanier Williams III, mais conhecido por seu pseudônimo de Tennessee Williams. Filho de um caixeiro viajante que passava mais tempo longe de casa, ele acabou sendo criado na casa dos seus avós maternos. O avô era um episcopal, e mantinha em casa uma vasta biblioteca, o que foi propício para o jovem Tennessee que por conta de uma saúde debilitada, compensava com as horas que passava ali seu impedimento de não poder ir à escola.
Recebendo uma educação refinada durante parte da sua infância, foi um choque para o garoto quando o seu pai resolveu retornar e arrumar um emprego em uma fábrica de calçados em St. Louis, levando sua família para viver novamente com ele. A vida simples ao lado de um pai amante de bebidas violento e jogador de pôquer, e de uma mãe quieta, porém bastante dominadora com seus filhos, em um apartamento apertado em uma cidade sem atrativos deixou marcas profundas em Tennessee. Especialmente quando a sua irmã mais velha começou a apresentar sinais de um transtorno mental, que a faria agir como uma eterna criança por toda a sua vida.
Anos depois, reprovado pela Universidade do Missouri, ao se mudar para Memphis, no Tennessee, para viver com o avô e trabalhar como biscate, foi que ele passou a acumular experiências de vida antes de receber uma bolsa de estudos da Fundação Rockefeller em 1940. São os seus dramas pessoais, e suas misérias existenciais que o inspiraram a escrever suas peças recheadas de personagens realistas e em situações cotidianas repletas de temas fortes, que fizeram de Tennessee Williams esse dramaturgo de grande sucesso e ganhador de muitos prêmios.
Falar sobre a vida do autor, é também falar de ?Um bonde chamado desejo?, pois as cenas mostram muito dessa experiência de uma vida simples e cheia de desventuras que Tennessee trouxe para o palco, de tudo o que viu e viveu, inclusive um dos seus personagens principais, Stanley (o marido de Stella, a irmã de Blanche DuBois) é o retrato do seu próprio pai.
De fato, Stanley é um personagem bruto, ignorante, insensível, e que após algumas doses de bebida libera todas as suas frustrações com alguma forma de brutalidade ou violência. Incluindo as agressões físicas à sua esposa Stella.
Antes de inserir meu comentário sobre o tema, eu gostaria de fazer um parêntese aqui para dizer que apesar da sensibilidade e seriedade que a questão da violência doméstica traz, é preciso olhar essa peça de 1947 com os olhos do passado e não do presente. Digo isso não para justificar ou amenizar a questão. Até porque não existe uma forma de justificar ou amenizar nada quando se trata de uma agressão física (nem mesmo a psicológica). Mas o que estou tentando dizer é que é preciso deixá-la vir à tona do jeito que ela é, porque existem outros elementos que a acompanham e que precisam ser vistos para serem compreendidos.
Dito isso, eu queria ressaltar que a menos que alguém aqui tenha vivenciado uma agressão física e carregue marcas que fazem com que qualquer introdução ao tema seja um gatilho, não existe qualquer profundidade nas cenas que traga um desconforto. Esses temas mais sensíveis são trazidos de uma forma mais discreta, dando apenas a ideia do que ocorreu.
Isso me fez refletir sobre uma conversa que tive esses dias com a minha irmã gêmea, onde discutimos como no passado os seriados costumavam trazer temas importantes, tais como esse da violência doméstica, porém de uma forma mais leve, e ao final do episódio sempre havia uma resolução do caso (com uma moral da história). Essa abordagem trazia menos desconforto, e ainda assim, promovia a discussão nos fazendo pensar no assunto de forma eficaz.
Na atualidade, esses temas sensíveis são tratados de forma tão nua e crua, expondo a violência em seus tons mais cruéis, que acaba por ter um efeito oposto, e ao invés de sensibilizar, termina por dessensibilizar o espectador. O que igualmente acontece com o excesso de livros sobre terror psicológico e violência. Nessa overdose de exposição à violência, acabamos nos acostumando com ela a ponto de começar a achar que tudo é normal. E por favor entenda: nenhuma forma de violência, seja ela física ou psicológica, deve ser vista como normal!
No clássico ?Footloose? de 1984, uma das personagens principais, Ariel Moore, em uma de suas cenas recebe uma bofetada no rosto pelo namorado enciumado com a proximidade que ela vem mantendo com o garoto novo, Ren McCormack, que resulta em um corte feio que deixa seus lábios sangrando. Já na versão (remake) de 2011, essa foi uma das cenas cortadas.
O que mostra o quanto agredir fisicamente alguém é tratado com muita seriedade nos dias atuais. E ainda assim, é preciso ter consciência de que mesmo com as leis criadas (que são falhas), e muitos outros esforços, o número de casos de violência contra a mulher não reduziu, mas só aumentou. E mesmo que tenhamos em mente a questão de que antigamente muitos casos não eram denunciados, o número de casos de feminicídios na atualidade são muito altos. O que indica que as relações entre homens e mulheres enfrentam muitas crises que precisam ser analisadas mais a fundo para se chegar ao ponto em que possa ver o que está causando tudo isso.
Agora? voltando à peça de Tennessee Williams, existe um ponto da violência doméstica de Stanley que insere outro tema bastante sensível do qual não me estenderei muito, mas quero apenas ressaltar aqui: a relação de retroalimentação entre a violência e a codependência.
Quando o efeito da bebida começa a passar, e Stanley vai se acalmando, em momento algum ele sente o peso de suas atitudes. Ele não mergulha nas consequências dos seus atos, nem na seriedade deles. Mas ele se dá conta de que não pode viver uma vida longe de Stella, sua esposa, porque o amor entre eles realmente existe (menos que inadequado, ainda é amor). O que o faz ficar desesperado para trazê-la de volta a todo custo. E ela? Ela volta.
Existe um jogo de sedução entre o extrapolar de Stanley e a forma como depois ele busca pela esposa como se ela fosse o ar que ele respira. E é aí que a codependência se instaura, e Stella até mesmo justifica os atos do marido para a irmã, Blanche. Rotular uma mulher como ela, como ?mulher de malandro?, é ainda mais perigoso do que se possa pensar. Porque nessa relação absurda, existe o aprisionamento daquele que carrega dentro de si questões muito mais complexas do que só o de aceitar o que não deveria.
Mas como eu disse, é algo profundo e complexo demais para conseguir trazer rapidamente nesta resenha. Por isso é que eu deixo aqui uma dica de um livro que fala sobre o assunto de uma maneira bem simples, chamado ?Codependência Nunca Mais?, da autora Melody Beattie.
Passando de Stella para a irmã Blanche, esta última me lembrou muito a Holly Golightly, a protagonista de ?Bonequinha de Luxo?. Ambas possuem a mesma sensualidade da mulher frágil, desprotegida, bem feminina e que se esconde atrás da máscara da mulher elegante, refinada, com seus vestidos e jóias, para manter longe dos olhares das pessoas com quem convive, um passado vergonhoso cheio de mistérios e traumas.
Tanto Truman Capote quanto Tennessee Williams ressaltam essa excentricidade da mulher como algo atraente, até mesmo sensual, que envolve os homens de tal forma que elas se tornam objetos do desejo masculino. Muito embora, especialmente nesta peça, seja evidente que todo esse comportamento ?exótico? da Blanche venha de um transtorno psicológico que tem em suas raízes situações traumáticas vivenciadas por ela quando ainda era apenas uma adolescente, ainda assim esse desequilíbrio parece exercer uma forma de atração.
O que eu senti enquanto lia, e me vinha à mente a figura de Holly Golightly, é que possivelmente essas mulheres revelavam muito da fantasia masculina da época. Como as pin-up, elas eram mulheres que encarnavam um personagem, cujas características principais era ser extremamente frágil, feminina, porém sempre sedutora, misteriosa.
Elas não eram mulheres reais e normais, que expunham com exatidão o que sentiam ou pensavam. Por isso mesmo que parte desse desequilíbrio era até mesmo sexy, atraente, porque fazia parte da encenação de uma fantasia em que uma mulher poderia até resistir, mas que ao final acabaria sempre cedendo às vontades dos homens. Fosse por bem, ou por mal.
Não me baseio aqui a um estudo profundo sobre o caso, mas é só uma observação, porque Blanche me lembrou muito de Holly Golightly, e acredito fielmente que Truman Capote nem tinha Blanche Dubois em mente, quando desenvolveu uma das personagens femininas mais icônicas que existe.
E também não estou aqui fazendo nenhuma apologia à questão dos homens serem vistos como predadores. Estou falando unicamente do desejo e da atração sexual. Por isso que reforço o caráter de que essas mulheres eram menos reais, e mais um personagem criado para atrair os homens. Porque em momento algum elas são unicamente passivas. Isso precisa ficar bastante claro, porque existia uma troca nesse jogo de interesses e de sedução.
Ler ?Um Bonde Chamado Desejo? foi uma experiência repleta de comoção, mesmo nos momentos mais difíceis, porque como eu disse anteriormente, é preciso deixar que a trama aconteça como deve acontecer. Sem julgar, ou se indignar, para que tudo seja sentido em seu extremo até que se apodere de nós, e possamos fazer parte de cada um desses personagens, sentindo como se pudéssemos ouvir o seu coração bater, tudo o que se passa em cada um deles, antes de tirarmos as nossas próprias conclusões.
Eu não esperava me apaixonar tanto assim pela escrita tão intensa quanto a de Tennessee Williams, mas ao final, eu sentia a vontade de mais, e muito mais mesmo desse dramaturgo que sabia como levar para o palco ?A vida como ela é?.