Julia 06/06/2021Tenho um carinho enorme pelas Brumas de Avalon. Quando era bem pequena, assisti Merlin (1998) com a minha mãe, e fiquei fascinada com os personagens pagãos das histórias do Rei Arthur. Um tempo depois ela alugou o filme das Brumas de Avalon, que eu amei, já vi milhões de vezes. E aí ela disse uma coisa que me marcou para sempre. Eu perguntei se essa era a história real, e ela disse que a história do Rei Arthur não era real, era uma lenda que cada pessoa contava de um jeito, e essa era a história contada pelo ponto de vista das mulheres. Foi assim que eu aprendi que uma história tem vários ângulos, e que a História costuma ser contada pelo ponto de vista dos homens, e que as mulheres podem ter um ponto de vista. E que a Fada Morgana costuma ser a vilã nas versões comuns, mas quando é pelo ponto de vista dela, ela não é vilã coisa nenhuma.
Bateu uma identificação também com o neo-paganismo que é retratado no livro e no filme. Minha mãe amava a natureza, fazia umas bruxariazinhas improvisadas, mexe com yoga, é devota de São Francisco, frequentou muito o candomblé, me ensinou o cristianismo pelos valores e não pelos dogmas. Já a família do meu pai é evangélica bem moralista, algumas mulheres são cornas mansas, têm um milhão de preconceitos e nenhum valor realmente cristão.
Li os livros pegando na biblioteca da igreja quando tinha uns 16 anos, e quando tinha acabado de mudar para São Paulo, passei na frente de um brechó no meu bairro e achei esse volume único em inglês por 15 conto. Comprei e só li agora, que acabei de ler Game of Thrones, pra continuar minhas leituras escapistas de quarentena.
Continuo amando o livro, mas dessa vez achei a Morgana e o povo de Avalon muito passivo, e acho que foi culpa deles que os padres fundamentalistas ganharam. Avalon não se retirou do mundo pelas brumas, apenas deixou de praticar os rituais, de estar presente no povo, deixou de estar presente no governo, de atrair noviços e lavou as mãos total. E ainda ficava discutindo com os fundamentalistas nos termos deles. E deu muita agonia ver a Morgana avacalhar o plano perfeito da Viviane, que apesar de ser muito esperta, tinha zero inteligência emocional. Se ela tivesse 1% nem de sensibilidade, mas de manipulação que fosse, ela podia ter conseguido que Lancelote, o melhor amigo do rei defendesse Avalon, se tivesse usado 1% da persuasão que usou (na verdade foi o Merlin, agora estou lembrando) para convencer a Igraine a seduzir o Uther, teria conseguido casar a Morgana com o Arthur.
E acho que a autora perdeu muito tempo na história da culpa da Gwenwhyfar e da Igraine (essa poderia ter a metade do tamanho) e deixou passar batido a relação mais central da trama, e uma das mais complexas e interessantes: o amor conflituoso, confuso e incestuoso de Morgana e Arthur. Mesmo que o desfecho fosse o mesmo, tinha um material psicológico aí importantíssimo que ficou batido mesmo. Em pouquíssimas passagens do livro o Arthur menciona os sentimentos dele, só praticamente na última página ele explica em uma frase porque ouviu a Gwenwhyfar e traiu Avalon (porque Morgana o rejeitou), e Morgana passa anos na corte e parece que ele nem está lá - nem para ser o homem que ela amou um momento, nem o irmãozinho, nem o rei de quem ela tinha que cobrar o juramento de Avalon. Mesmo que ela não se sentisse digna como sacerdotisa e estivesse puta com a Viviane, ela apenas ignora o fato do Arthur estar lá no mesmo castelo que ela a maior parte da vida dela.
Mas apesar de ter sido excessivamente extensa, na minha opinião, o retrato do fundamentalismo de Gwenwhyfar foi muito certeiro. Parece até que Bradley leu "O Poder da Identidade", de Manuel Castells. É o retrato perfeito do religioso que o é por ter um medo enorme do mundo, do Outro e, principalmente, da própria consciência. Por isso busca uma ideologia simples, rasa, com preceitos diretos e dogmas de costumes e não espirituais, que justifiquem suas falhas e frustrações e não lhe deixe nenhuma incerteza de nada na vida sabendo ser justificada pela chancela do "divino" e por meio do sentido de comunidade e de ter um outro absoluto, que deve ser totalmente destruído no que o constitui enquanto Outro. E para as incoerências da vida, resta a hipocrisia, ou defender a liberdade até onde se quer um alívio do próprio moralismo, para a sua situação particular.
Tenho mania de trocar ou dar os livros assim que acabo de ler, mas esse tenho carinho e vou guardar para meus próprios filhos.