Coruja 05/01/2017Relutei em começar a ler The Shepherd’s Crown, o derradeiro livro da série Discworld escrito por Pratchett, publicado postumamente. Não queria me despedir desse universo, não queria terminar e depois ter a consciência de que não haveria mais um. No entanto, essa era uma dor necessária e a última homenagem que eu poderia fazer às palavras finais de um homem e autor admirável, que me inspirou, emocionou e fez refletir ao longo de toda a última década.
Aviso de pronto que a partir daqui discutiremos spoilers. É difícil não entrar nos detalhes para falar tudo que se tem de dizer sobre esse livro, afinal.
A história se divide em dois pólos de ação, ambos decorrentes da morte, logo no início do livro, de Esme Weatherwax - na tradução das edições da Conrad, vovó Cera do Tempo -, com Tiffany herdando sua cabana e suas botas (e sua posição não-oficial de líder das bruxas do Disco), enquanto, do outro lado, os elfos, sentindo a barreira entre os mundos tornar-se mais frágil e sabendo que não há mais a vovó para enfrentar, preparam-se para uma invasão em massa.
Seria impensável iniciar um livro do Disco com a morte de uma personagem tão importante quanto Weatherwax se esse não fosse um livro de despedida. Isso é interessante, porque Morte sempre foi particularmente simpático nas obras de Pratchett e aqui, como em todas as suas aparições, ele demonstra a empatia e gentileza que muitas vezes o caracterizaram. Até então, nenhum dos grandes nomes do Disco desaparecera, mas agora, Pratchett queria explorar as consequências de uma ausência tão importante - e, afinal, não haveria outro depois desse.
Morte, para sir Terry, nunca foi algo a ser temido e execrado, e embora, como vovó muito bem coloca, ainda haja muito que se fazer, a parte dela como principal jogadora do tabuleiro acabou. Numa passagem que muito me lembrou Consoada de Manuel Bandeira (“quando a Indesejada das gentes chegar (...) encontrará lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”), Weatherwax, sabendo - como é privilégio das bruxas saber - o momento em que irá morrer, limpa a casa, cuida de suas abelhas, escolhe o lugar em que quer ser enterrada e deixa registrado seu desejo de que Tiffany herde suas coisas. Ela se deita e adormece, para então cumprimentar Morte, que chegou para levá-la.
Não posso deixar de pensar que foi dessa maneira que Pratchett se foi. Em paz com suas escolhas, deixando para trás tudo organizado para sua ausência. E o livro, esse derradeiro livro, como um consciente consolo, uma lição para sabermos como lidar com a dor, passar pelo luto e lembrar-se de que a vida continua e que é dessa forma que devemos honrar e lembrar aqueles que perdemos - pois é dessa forma que Tiffany e todos os outros personagens que tiveram suas vidas tocadas pela vovó Weatherwax agem.
Para Tiffany em especial, a perda da vovó traz consigo o peso do legado que ela lhe deixa. Weatherwax era considerada a mais poderosa de todas as bruxas do Disco e sua líder de facto, ainda que não oficialmente. Tiffany é jovem, filha de uma família de trabalhadores rurais, vinda de Giz - uma terra arenosa, não muito fértil para dar poder a uma bruxa, segundo crê a sabedoria popular. Por mais que, em sua curta carreira, Tiffany tenha realizado alguns feitos bem impressionantes, é difícil para as bruxas não compará-la e subestimá-la em relação à vovó. Especialmente a própria Tiffany, o que não torna as coisas fáceis.
Para além das questões que dizem respeito à sucessão de Esme Weatherwax, há o fato de que os elfos estão planejando uma invasão maciça do mundo do Disco, crendo-o indefeso com a morte de uma de suas mais poderosas guardiãs. Um ‘golpe de estado’ tira a Rainha das Fadas do poder, uma vez que já tendo sido derrotada antes, ela é agora considerada fraca demais para levar tais planos adiante. Expulsa de seu reino, a monarca - agora chamada apenas de Nightshade - se vê à mercê de Tiffany, que acaba não apenas acolhendo-a, como também fazendo amizade com ela… e lhe ensinando a ideia de empatia, de fazer algo sem esperar nada em troca, e sentir-se bem com aquilo. E Nightshade responde a esses ensinamentos.
O que a maioria dos elfos não é capaz de compreender, contudo, é que seu tempo acabou. O progresso chegou ao Disco, a bordo dos trens dirigidos por goblins: uma era de ferro, em que os homens não têm mais tempo para o modo de vida em que os elfos podiam se encaixar. E isso não é uma verdade apenas num sentido metafísico - o fato de estarem se multiplicando as ferrovias é um risco para os elfos, que não suportam ferro.
The Shepherd’s Crown é um perfeito paralelo de Os Pequenos Homens Livres; a primeira e a última história de Tiffany mostram-na lutando contra os elfos. Ao pensar nas duas histórias, enxergamos o crescimento da personagem, o quanto ela amadureceu, o quanto aprendeu. O que é mais interessante ainda é que esse livro também se reporta a Direitos Iguais, Rituais Iguais, o livro que nos apresentou às bruxas e a vovó Weatherwax. Naquele livro tínhamos Eskarina Smith, sétima filha de um sétimo filho, portanto, um enorme talento para a magia. Só que a magia de Esk não era aquela própria às bruxas e sim aos magos - e assim a história relata suas dificuldades em se inserir e ser aceita num mundo até então exclusivamente masculino. The Shepherd’s Crown, por outro lado, nos dá Geoffrey Swivel, o filho mais novo de Lorde Swivel, que deixa a casa do pai cruel e ignorante para se tornar aprendiz de bruxa com Tiffany.
Esk, ao final das contas, é aceita na Universidade Invisível como maga, especialmente pela teimosia da vovó; Geoffrey, contudo, nunca será um bruxo, embora seja aceito por elas em seu meio. Ele entende a ideia de usar a cabeça antes de usar poderes e como as bruxas, sente ser sua vocação o servir às pessoas e não ter poder pelo poder. Mas Geoffrey é universalmente benquisto e aceito em todo lugar em que vai, tratado como parte da família, ao passo que as bruxas vivem à parte da sociedade de que cuidam, mantendo a distância necessária para que possam tomar as decisões mais difíceis. Ao final das contas, ele é algo diferente de uma bruxa, algo completamente novo na hierarquia mágica do Disco, alguém que ‘costura a paz’, nas palavras de Tiffany.
É um dos livros mais curtos da série e, como Rob Wilkins, colaborador e amigo próximo do autor, observa no posfácio, não chegou a passar pela revisão e polimento que Pratchett costumava dar aos seus enredos. Neil Gaiman, falando sobre o assunto, disse que o amigo não teve tempo de acabar e que o final da história que nós lemos não é o mesmo que Pratchett queria: a ideia original é que, quando da chegada de Morte, vovó Weatherwax tivesse colocado sua consciência no gato You e apenas após estar tudo resolvido no fim da história, Morte retornaria para levá-la e ela estaria indo embora ‘em seus próprios termos’ - numa referência bastante óbvia à luta de Pratchett pelo direito de escolher a própria morte.
Isso não significa que haja pontas soltas - pelo contrário, The Shepherd’s Crown é perfeitamente fechado, redondinho em sua história e também como encerramento para o universo mais amplo do Disco. Não é a melhor obra do autor, mas é um livro dele, e a história que precisávamos em sua despedida. É um volume melancólico, mas esperançoso, sem tanto do humor, mas muito da crença de Pratchett no melhor do ser humano. Um livro sobre morte, sim, e sobre luto, mas também sobre coragem - de seguir o próprio caminho, de fazer suas próprias escolhas -; sobre solidariedade, integridade, transformação, empatia, gentileza.
É um final digno, que nos lembra ainda outra lição importante legada por Pratchett: um homem não está morto enquanto seu nome ainda é falado e Tiffany sabe que vovó Weatherwax continua presente ‘em todo lugar’, e assim continuará enquanto as pessoas que ela tocou se lembrarem dela... Assim como Pratchett e seu universo maravilhoso nos tocaram.
E assim, nos despedimos de novas histórias no mundo do Disco, mas isso não significa que essa será a última vez que embarcaremos nessa viagem. Afinal, sempre há as releituras e sempre haverá algo novo a se perceber nessas histórias, algo com que se admirar e então lembrar, carinhosamente, do homem do chapéu e seu incrível legado.
Crivens!
site:
http://owlsroof.blogspot.com/2017/01/projeto-pratchett-shepherds-crown.html