Ivan de Melo 16/08/2020
Magus, o romance biográfico de um Nostradamus que não conhecemos
Começo este comentário com uma trivia. Meu primeiro contato com este livro foi por volta dos 9 ou 10 anos de idade quando eu desbravava as bibliotecas públicas de São Paulo pela primeira vez. Lembro que eram duas as minhas seções favoritas: a de quadrinhos e a sobre ocultismo (pois é) e foi nesta última que encontrei este romance biográfico sobre Nostradamus. Lembro-me que peguei o livro emprestado e o devorei. Seria a minha primeira experiência com um romance histórico e me senti transportado ao passado com a narrativa do autor. Infelizmente não pude continuar a leitura, pois a biblioteca não possuía os demais volumes da trilogia. Acabei esquecendo essa série e me deparei novamente com ela agora em 2020, muitos anos depois, e decidi fazer um projeto de leitura de todos os livros. Fim da trivia.
Esta é uma biografia romanceada sobre Michel de Nostredame, apotécario, médico, astrólogo e alquimista francês que viveu no século XVI e cuja fama ao longo dos séculos se deve as profecias que teria escrito descrevendo eventos futuros. Valerio Evangelisti escreveu toda a série “Magus” em 1999 lançando-a em três livros: “O Presságio”, “A Astúcia” e “O Abismo” que saíram por aqui em 2001 pela Bertrand Brasil.
No primeiro livro da série acompanhamos Nostradamus a partir dos seus últimos anos na faculdade de medicina de Montpellier na primeira metade do século XVI em meio à boemia da vida estudantil e os primeiros surtos da peste na França. É neste momento que somos apresentados ao grande vilão do primeiro livro, Molinas, um famigli a serviço da Inquisição Espanhola que está no encalço de Michel de Nostredame. Sabemos a partir deste personagem que o protagonista descende dos cristãos novos que neste período são caçados pela Igreja pela prática do criptojudaísmo, a prática secreta da religião judaica após a conversão ao cristianismo. Não fosse somente isso, Molinas acredita que Michel de Nostredame pode levá-lo ao paradeiro de Ulrico de Magonza de quem fora pupilo. Magonza é acusado de práticas ocultas e também de estar envolvido em uma seita herética. Esta perseguição será o foco deste livro que se desenvolve de forma folhetinesca com vários saltos no tempo e uma narrativa que alterna os episódios entre Michel e Molinas.
Talvez o que me chama mais a atenção aqui é a atenção de Valério Evangelisti na reconstrução de um contexto histórico. O autor foi historiador especializado em História Moderna e Contemporânea antes de adentrar a literatura e é possível ver a concretude da pesquisa nas páginas de “Magus”. O século XVI, como Evangelisti explica num capítulo inicial do livro, foi um período muito complexo no qual se imbricavam discussões políticas, territoriais e religiosas além do flagelo do século, a peste. Cada uma destas facetas do tempo marca a trajetória de Michel e Molinas de alguma forma, de modo que a própria História é quase um personagem. Não podemos esquecer, é claro, que se trata de uma obra fictícia, mas há uma maestria de Evangelisti ao nos transportar, de fato, para a aridez do século XVI (minha experiência com o livro na infância permanece autêntica) e mobilizar personagens históricas em sua fantasia, como é o caso dos Médici, da François Rabelais, entre vários outros. Outro ponto interessante é a ausência de uma construção dicotômica entre os personagens. Michel e Molinas não enquadram bem o papel de herói e vilão, respectivamente, e olha que Molinas é um dos personagens mais obstinados que já encontrei na literatura. Ambos os personagens possuem camadas e isso deixa a história mais rica, uma vez que Evangelisti constrói homens de seu próprio tempo (o que explica a vontade que temos de surrar Nostredame em vários momentos).
Infelizmente a série não ficou muito famosa por aqui e mesmo outras obras do autor não encontraram um público mais cativo. Talvez tenha sido o timing da publicação, pois sabemos que o nicho da ficção histórica está muito presente no gosto dos leitores hoje. Ansioso para ler o próximo título. Fica a dica para quem deseja uma ficção histórica despretensiosa, mais bem elaborada.