Andreia Santana 17/10/2011
Olhar irônico e sensível sobre a sociedade do século XIX
Jane Austen é considerada uma das personalidades literárias mais influentes da Inglaterra, só perde para William Shakespeare. Também é uma das precursoras do romance feminino no século XIX e suas obras, relançadas ano após ano, não perdem o ineditismo. Embora datadas por costumes específicos da sua época, presentes tanto nas descrições de paisagem, trajes e lugares quanto na linguagem da escritora, os sentimentos retratados nas obras de Austen são imortais: amor, ambição e egoísmo.
Para quem prefere uma linguagem mais pop e ágil, os livros de Austen não são recomendados, sob pena de serem interpretados como cansativos. Mas se a intenção é saborear as palavras, deixar que os cenários rurais dos arredores de Londres desenhem-se pouco a pouco na mente, ou se o objetivo é refletir e tecer paralelos entre os costumes e o comportamento da sociedade de ontem e a de hoje, vale muito a pena.
Razão e Sensibilidade, um dos seus livros mais famosos, levado ao cinema com a fascinante Emma Thompson, é uma crônica perfeita não de época, mas de sentimentos humanos atemporais. Embora as caçadoras de marido – presentes ao longo de toda a obra - tenham mudado a forma de vestir-se, ainda existem nos dias atuais, disfarçadas de “marias chuteira” e correlatas.
A obra é uma crítica apurada dos hábitos da indolente aristocracia britânica dos anos 1800, mas se repararmos bem, muito do que ela descreve, mudando-se o cenário e a indumentária, aplica-se a sociedade atual.
Elinor Dashwood e sua irmã funcionam como alter-egos da autora. A primeira, numa comparação simplista, pode ser associada à razão do título. É discreta, muito madura para seus 19 anos, observadora sagaz do mundo que a cerca, cheia de valores morais que em determinados momentos até fazem-na assumir ares de superioridade.
A segunda Dashwood é o lado mais revolucionário de Austen, mais nova, Marianne é a pura sensibilidade, passional, envolvente, pulsante. Junto da irmã, Elinor parece uma morta-viva. Enquanto Marianne, ao ser comparada com a capacidade de autocontrole da irmã mais velha, beira a esquizofrenia.
O mundo descrito por Jane Austen é carregado de segredos e subterfúgios, envolto em preconceitos, muitos ditados pela ignorância. É a época da histeria feminina, do confinamento forçado que levava as moças às crises de nervos e que contribuía para o controle masculino sobre a sexualidade e o comportamento femininos.
Embora o tema central da obra sejam os relacionamentos homem x mulher, a escritora não descreve um único beijo, as pessoas mal se tocavam naqueles tempos de pudor, decoro e vigilância, mas a carga emocional das suas histórias de amor, ou da falta dele, dos casamentos de conveniência, das paixões sufocadas nas alcovas, longe dos olhos dos outros, traz uma energia tão forte como se ela tivesse descrito a cena de sexo mais desesperada. Só que tudo é feito em um tom comedido, polido e educado. Em linguagem dúbia e metafórica.
Acredito que a crítica, a ironia fina da autora é mais presente justamente no que ela não diz, mas deixa subentendido.
O ato de dissimular é apresentado em todas as suas nuances neste romance. Elinor dissimula tudo o que sente, em certos trechos a protagonista beira a hipocrisia, e é por isso que seu contraste com Marianne é tão acentuado, porque a irmã mais moça é completamente transparente e muito imatura. No seu semblante, Marianne estampa ira, decepção, exuberância, alterna sentimentos, uma força da natureza, um exemplo clínico de distúrbio bi-polar.
O tempo inteiro, os demais personagens da trama são apresentados aos leitores pelos olhares díspares e ao mesmo tempo complementares das duas irmãs. Em alguns momentos, o descontrole de Marianne irrita tanto quanto a frieza de Elinor. Os julgamentos da irmã mais nova, sempre levada pela emoção, em alguns momentos são injustos e levianos. Os de Elinor, que têm mais justiça por sua capacidade de observar e compreender, flertam perigosamente com a intolerância, devido aos padrões éticos rígidos.
Já os personagens masculinos deste livro: Edward, Willoughby, coronel Brandon, também são uma incógnita. O primeiro, alvo das atenções de Elinor, aparenta fraqueza, indecisão, mas surpreende ao virar o jogo.
O segundo, alegre, exuberante, sedutor, esconde um caráter dúbio e intenções duvidosas. Já o coronel, com 35 anos, considerado velho para os padrões da época, é comedido, sensato, sofrido e ao mesmo tempo um modelo de cavalheirismo, mas não deixa de ser passivo. Quem espera heróis intensos, se decepciona com as personagens masculinas de Jane Austen.
A sensação ao final de Razão e Sensibilidade é que para compreendê-lo é preciso mergulhar em toda a obra da escritora. Mas a leitura, para quem gosta de considerações filosóficas e de boas crônicas de época, é mais que satisfatória.