George D'Araujo 13/01/2015
Ficção e autobiografia se misturam com classe em O Mundo, de Juan José Millas
O Mundo foi um desses livros que se descobre numa promoção, por um precinho de banana, mas que tem como conteúdo um tesouro.
Narrado em primeira pessoa, a obra, com sua cota entre a autobiografia do autor espanhol Juan José Millás e a ficção, tem a capacidade de fazer emergir aquela sensação de nostalgia. As primeiras páginas do livro podem deixar o leitor meio perdido, num vai e vem de frases e observações entre parênteses, recheadas de vírgulas. Entretanto, logo se percebe que Millás tem uma forma autêntica de moldar seu texto, de forma não linear, que nos faz mergulhar numa queda e então nos desvia de rumo, bruscamente, antes de voltar ao caminho central. Com parágrafos longos e poucos diálogos, o autor é capaz de ótimas transições entre sua infância e seus dias atuais, fazendo paradas no meio do caminho, em algum acontecimento, para reforçar algo ou mostrar o destino de algum personagem. Isso aumenta de tal forma a empatia pelo protagonista que fica fácil se prender. Após convencer-se dessa capacidade e entregar-se totalmente a narrativa, devorar o livro é tarefa feita em poucas horas.
Enquanto adulto, Juan é o personagem autor que evita lugares fechados e cheios, que sofre de ansiedade e síndrome do pânico. Ao passo que segue as responsabilidades de sua agenda, tem por fazer uma tarefa há muito tempo adiada. E é a partir dessa tarefa que retorna a sua infância, em Madri, por volta dos anos 50, das poucas amizades, alguns amores e muitas lições, que vão lhe apresentando o mundo, enquanto busca nas entrelinhas uma tentativa de descobrir como chegou a ser a pessoa que é atualmente. Aliás, esses dois momentos, apesar de mostrarem uma mesma pessoa, parecem também revelar personagens muito diferentes.
Na meninice, com as barreiras de liberdade que a pouca idade lhe impõe, é dentro de limites que vê a vida, as primeiras impressões e relações. Juanjo tem sua mãe como um refúgio, a que mais lhe entende e por quem nutre uma admiração apaixonada, e em seu pai a imagem do homem que se divide entre a família, o trabalho e a vontade de obter reconhecimento. Numa casa com tantas pessoas, sente-se deslocado e refugia-se na fantasia de situações e cenários em que pode ser mais do que uma criança, um explorador. Além de sua família, há também Vitaminas, o frágil filho do dono da venda, com quem faz amizade e uma parte de suas descobertas e filosofias de garoto. Esse mesmo dono da venda, Mateo, desperta a curiosidade do garoto, que acha que o homem tem um trabalho muito importante e secreto. E, claro, a irmã de Vitaminas, uma das primeiras a acordar seus desejos.
nteressante é perceber como todas as aventuras levam o menino a entrar num processo de pensamento filosófico que se mistura em sua imaginação e acaba impresso em seu mundo real. Pensamentos sobre a morte, sobre o amor, sobre a educação, religião, etc. Em alguns momentos Millás combina de forma tão homogênea ficção e realidade que só percebemos essa transição mais a frente, quando o mesmo nos diz que ela ocorreu.
Ganhador de prêmios literários e de jornalismo, Juan José Millás escreve atualmente para o jornal El País. Neste livro o autor espanhol refere-se a muitas outras de suas obras (talvez numa jogada de autopromoção e que funciona bem), o que aguçou uma vontade de poder lê-las.
Enfim, O Mundo despertou em mim (assim como ao ler O Oceano no Fim do Caminho, de Neil Gaiman) a sensação nostálgica de uma infância que usa a imaginação como fuga à solidão e aos problemas do mundo adulto. Em de um trecho do livro o autor diz: “o ato da escrita é como um bisturi elétrico, que corta ao mesmo tempo em que cauteriza uma ferida, ou seja, nos traz dor e ao mesmo tempo alívio”. Assim é O Mundo, ao encerrar a sua leitura, fica uma saudade que dói e traz alívio, dos tempos em que podíamos ser princesas, agentes secretos ou o que quiséssemos ser; dos tempos em que apenas nosso bairro e nossa rua eram mundo o bastante para inúmeras vivências.
Mais que recomendo!
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