jota 14/05/2013Como Deus manda e o Diabo gostaOcorre um crime hediondo nesta história passada num vilarejo do norte da Itália, mas este não é um livro policial. A polícia aparece e faz muito pouco aqui. Os personagens principais de Como Deus Manda são pequenos marginais; temem a Deus e têm certos códigos de ética, mas também tem a bandidagem correndo solta pelas veias.
Esses italianos são bastante diferentes dos bandidos americanos, por exemplo, não somente porque são católicos, comem massas e bebem grapa o tempo todo, mas porque são muito abestalhados, envolvem-se em situações muito pouco inteligentes, fazem piadas uns com os outros e dizem palavrões a cada frase proferida.
Assim, nem Jesus, a Virgem Maria e os santos escapam da saraivada de baixos calões expelidos quase sempre em altos brados ou em praguejamentos silenciosos. Um dos marginais principais, que levou uma descarga elétrica tempos atrás e ficou meio tantã apropriadamente se chama Quattro Formaggi (Quatro Queijos) e é ele que desencadeia quase que toda a ação da segunda metade do livro.
Quatro Queijos, Rino Zena e Danilo Aprea, três amigos mal-arranjados, planejam roubar o caixa eletrônico de um banco da cidade, mas no dia marcado um terrível temporal cai sobre o vilarejo e uma garota e sua motoneta atravessam o caminho de um dos amigos. A partir desse acontecimento, as coisas saem totalmente fora de controle.
Mas o tema principal da obra de Niccolò Ammaniti não é exatamente a criminalidade, a bandidagem ou a marginalidade, senão o amor extremado de Rino Zena, trabalhador avulso, bêbado e quase um bandido, por seu filho único, Cristiano, onze anos, péssimo aluno e já um delinquente em formação. Mas também um garoto capaz de despertar nossa simpatia pela situação de risco em que vive. E a preocupação de um assistente social, Beppe, que também se vê envolvido na história.
A redação que Cristiano faz um dia na escola sobre os nazistas, um dos pontos altos da primeira parte do livro, seria de morrer de rir se não fosse extremamente preconceituosa (ou criminosa) contra negros, estrangeiros e judeus. Pai e filho são neonazistas, o menino muito mais por influência do pai do que por outra coisa, já que seu maior desejo é mesmo ter uma motoneta, fazer catorze anos, poder dirigir. Ou ter um celular já, por ser o único de sua classe sem o aparelho cobiçado por todos os adolescentes.
Os imigrantes, especialmente os eslavos e africanos, são os grandes inimigos de Rino e seus amigos, que acreditam que esses estrangeiros vêm à Itália para tomar seus empregos e suas mulheres. E a vinda de um segundo Hitler para resolver essa situação é saudada por Cristiano em sua redação. Os personagens principais têm ou tiveram problemas com as mulheres ou ex-mulheres, então quase todas são consideradas putas. Assim também, algumas colegas de classe e professoras de Cristiano.
Importantíssimo o papel da televisão nesta história. Pois os personagens desempregados passam a maior parte do tempo em casa, bebendo e vendo filmes pornôs, propaganda, games e séries americanas. Cristiano é, na parte mais dramática da história, digamos assim, teleguiado pelos personagens de seriados americanos e age de acordo com o que viu em muitos episódios transmitidos.
Por focar a ação não apenas num crime e de certo modo fornecer um panorama da vida italiana contemporânea através de suas classes sociais, Como Deus Manda me pareceu ainda mais interessante agora do que quando li uma resenha que me motivou a ler a obra. Não à toa, este foi o romance que ganhou o Strega em 2007, o mais importante prêmio literário da Itália, equivalente ao Goncourt francês, por exemplo.
Foram essas minhas impressões e gostei muito de ter lido este livro de Ammaniti. Mas alguém pode achar essa história uma merda, como diriam talvez Rino, Cristiano ou qualquer outro personagem.
Lido entre 06 e 13/05/2013.