Ari Phanie 16/11/2020Querido Deus, obrigada pela Alice Walker e o seu A Cor PúrpuraEu fui uma criança e adolescente cinéfila, que fazia vaquinha entre os parentes pra levantar dinheiro pra alugar filmes (devo milhões pros meus familiares), e desse tempo lembro da maioria dos filmes que aluguei, apesar de não recordar grande coisa de suas histórias, a não ser que me marcassem muito. A Cor Púrpura não me marcou. É um filme do Spielberg (o que já diz muito por si só), mas só lembro de que achei os personagens tão sofridos e a história tão triste... então, quando peguei o livro sabia que me sentiria assim de novo. E com o começo do livro eu confirmei isso. Mas quando eu terminei, eu estava feliz. Não por ter terminado, mas porque o livro não é o que eu pensei que fosse ser.
Alice Walker conta a história de Celie através do recurso de cartas, começando com as cartas da adolescente Celie para Deus. Não para pedir algo, mas para contar o que não podia contar a mais ninguém: que seu padrasto estava abusando sexualmente dela. Sem mãe, rodeada de irmãos com os quais tinha que se preocupar, principalmente com a irmã mais nova, Celie logo se ver em mais um problema sobre o qual precisa desabafar com Deus. Ela é dada a um homem mais velho e desconhecido para se casar. Felizmente sua irmã mais nova se reúne a ela. Mas não por muito tempo. E logo Celie fica sozinha no mundo, tendo que criar várias crianças que não são suas e que a odeiam, e ainda precisa aceitar os caprichos de um homem violento. O único momento em que ela pode usar a sua voz é só quando escreve suas linhas para Deus.
Celie é inicialmente uma mulher obediente, que abaixa os olhos e a voz em casa, mas que através de outras mulheres percebe que não precisa viver em opressão. A primeira a mostrar isso foi Sophia, a esposa do filho do Senhor _ , marido de Celie. Há tantas personagens maravilhosas nesse livro (todas mulheres) que fica difícil escolher uma preferida, mas sem dúvida, pra mim Sophia está muito perto disso. A personagem é a própria encarnação da liberdade e rebeldia, que luta para que não lhe seja tirada nenhuma possibilidade de escolha e nem tirem proveito dela. Ela sofre por isso, mas não abaixa a cabeça. E com ela, Celie experimenta pela primeira vez que ninguém é dono de ninguém, que as mulheres não precisam aguentar os punhos de um marido como disciplina e que podem revidar.
"Toda minha vida eu tive que brigar. Eu tive que brigar com meu pai. Tive que brigar com meus irmão. Tive que brigar com meus primo e meus tio. Uma criança mulher num tá sigura numa família de homem. Mas eu nunca pensei que ia ter que brigar na minha própria casa.”
A segunda mulher que muda as perspectivas de Celie é a Shug Avery, amante do seu marido. Assim como Sophia, Shug desconstrói algumas das ideias incutidas na Celie pela convivência com homens tão machistas e abusivos. E também a ajuda a perceber como funciona sua própria sexualidade.
Eventualmente, o destinatário das cartas de Celie muda de Deus para sua irmã, Nettie. E as cartas de Nettie são incrivelmente interessantes ao trazer uma realidade muito diferente daquela que Celie vive, mas com alguns pontos semelhantes que parecem existir e persistir em qualquer tipo de sociedade. As cartas escritas por Celie também ficam diferentes. Essa Celie que escreve para a irmã tão amada é diferente daquela do começo. A trajetória dela é marcante e a personagem tem um crescimento gigante, passando de um bichinho com medo no canto da cozinha, que abaixava o cabeça para todos e aceitava tudo, para finalmente um indivíduo que mostra suas dores, desejos e mágoas. É imensamente satisfatório ver a Celie crescer.
"Ela falou, Dona Celie, é melhor você falar baixo. Deus pode escutar você. Deixa ele escutar, eu falei. Se ele alguma vez escutasse uma pobre mulher negra o mundo seria um lugar bem diferente, eu posso garantir."
Finalizando, essa é uma das obras mais importantes da literatura americana, e sem dúvida, merece tal posição. O livro que é contado por uma mulher negra semianalfabeta em um contexto histórico duplamente opressivo, que ao mesmo tempo que é muito sensível, é também muito duro; encanta, pesa e marca. O final foi um dos melhores que li na vida, e me deixou imensamente feliz. Terminei aquecida pelo poder da família, da luta, da resiliência, do amor que esse livro transmite. Eu não esperava mesmo, e afinal, foi ótimo que eu não lembrasse nada da história. Livro incrível!