Gustavo.Romero 23/03/2018
Primeiramente, devo meus elogios a mais um trabalho editorial primoroso da Editora 34, com uma tradução direto do russo de uma especialista em artes cênicas – a professora Arlete Cavaliere -, que ainda nos presentei com um formidável posfácio, contendo análise aprofundada da obra e sua contextualização.
Quanto ao livro/peça: “Mistério-bufo” é um dos representantes mais notáveis do futurismo russo. Sua proposta imagética fortemente marcada por elementos do progresso tecnológico (luz, eletricidade, máquina, trabalho coletivo, metalurgia) leva à sua associação quase imediata aos propósitos industrialistas colocados em curso após a Revolução Russa. A sátira ácida e penetrante que se vale de personagens clownianos marcantes e caricatos, torna o ritmo da peça alucinante, sugerindo velocidade, instantaneidade, emergência, extremidades. Assim sendo, do ponto de vista estético e estilístico, há pouca controvérsia de que a obra de Maiakóvski marca de fato a arte soviética e, muito mais do que isso, destaca o vislumbre de toda a humanidade no início do século XX com as possibilidades tidas por infinitas, abertas pelo desenvolvimento científico e pela manipulação da natureza em estado bruto.
Porém, nesta brevíssima resenha, há outro elemento que gostaria de destacar - que se esboça em “Mistério-Bufo” e se reforçará em “O percevejo” -, o qual, ao meu ver, torna a proposta de Maiakóvski ainda mais atual. Há no texto a presença constante da “pequena política” (nos dizeres de Gramsci), aquela que, distante das bandeiras hasteadas e das melodramáticas propostas ideológicas envoltas nos discursos extremados de ódio (que tanto testemunhamos nos dias atuais), oculta o que há de mais real no comportamento das sociedades – uma tendência inerente a posições oportunistas, convenientes ou cômodas, todas, em geral, marcadas pela passividade da representação política. Nos diversos momentos de articulação política esboçados na peça, vemos surgir em meio às artimanhas personagens quase que apáticos, à deriva das tensões do momento. É nesse ínterim que reluzem aqueles que acho os personagens mais interessantes (ainda que todos sejam essenciais à composição do enredo), que indico e apresento os motivos:
- O “Negus abissínio”; tradicional “bode expiatório”, que em meio às articulações políticas se vale apenas do momento oportuno para saciar seu “apetite” imediato, sem medir as consequências ou desventuras decorrentes de sua “fome” exagerada (a figura vale para a miríade de países que se alimentam dos repetitivos “ciclos de commodities”, aí incluídos exemplares como o nosso ilustre Brasil);
- Os personagens intermediários, que nem são “puros” nem “impuros”, e representam o máximo do oportunismo político:
- a “Dama”; figura aparentemente “alienada” e que se acomoda facilmente às conjunturas, em nada afetando o ciclo decisório e alimentando igualmente situações de posição e oposição – poderia facilmente representar a parasitária classe burocrática dos Estados modernos, sempre preocupadas em meramente se alimentar dos “luxos” providos pelas decisões administrativas centralizadas;
- O “Conciliador”; aqui apresentado como caricatura da ala menchevique, mas que facilmente se estenderia ao clássico “centrismo” político, cuja sustentação se resume a expelir repetidamente propostas de “conciliação” vazias de significado, vazias de efetividades, servindo ao único propósito de sugerir que existe uma “alternativa” – absolutamente hipotética – ao poder constituído;
- O “Intelectual”; figura típica de qualquer época e lugar, avessos à “vida prática” cuja funcionalidade restrita é articular discursos fastidiosos e não apresentar qualquer proposta efetiva de intervenção social; tornam-se facilmente instrumentos de apoio ou oposição política e são descartados tão logo seu discurso não represente os interesses em questão (caricatura muito clara dos acadêmicos de gabinete). Num dos trechos mais brilhantes do livro, o intelectual declara:
“Trabalhar,
Nem de passagem.
Vou ali me sentar
E adotar a sabotagem.
(Grita para os trabalhadores)
Vamos, mexam-se depressa!
Cortem, não quero nenhum vacilo!
- CARPINTEIRO
E você fica aí sentado, de braços cruzados?
- INTELECTUAL
Eu sou o especialista, insubstituível...” (p. 45)
- E o personagem “CAMPONÊS”; particularmente importante à história russa por se encontrar como elo de ligação entre um passado servil e um futuro proletariado (devo mencionar, por um lado, o diferente e conflitante papel que desempenha o mujique para Turgueniêv e para Tchékov), mas também importante por abrigar, num contexto mais geral, as dissensões da tradição e da mudança e representando a amórfica massa de manobras (representando, por outro lado, um dilema para a proposta “revolucionária” de Lênin – em particular, no livro “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia” -, que a vê concomitantemente como empecilho e potencial subversivo). A passagem mais característica a esse respeito é quando o camponês se depara com o “dilúvio socialista”:
“Eu, hein!!
Eu é que não queria estar lá fora, molhado.” (p. 47.)
Enfim, o destaque fica por conta das tensões com que se depara Maiakóvski e se depararão muitos escritores russos posteriores (Patermak, Chalimóv, Bulgákov) – sem aludir especificamente ao “fracasso” do regime socialista, mas observando o comportamento humano em geral, veem gradativamente a potencialidade individual absorvida pelos movimento alienantes de massa (o “mistério”), que produziram, igualmente, figuras o “homem soviético” e o “self-made man” – os “bufos”.