Rub.88 10/11/2018Pau que acham torto nem machado endireita...A escrita coloquial não está presa à regras gramaticais rígidas. Tempos verbais livres, concordância nominal flexível e abundancia de neologismos. Gírias e palavras de cunho regional. Tudo para agilizar e harmonizar o texto a época e aos personagens descritos.
Uma Vida em Segredo, do mineiro Autran Dourado, foi publicado em 1964. Nessa novela, que se pode dizer em termos literários ser o meio termo entre conto e romance, é narrada a chegada de Prima Biela a cidade depois da morte do pai. Ela viveu até então toda a sua vida numa fazenda distante de tudo. Um bicho do mato. Mesmo tendo por volta de 16 anos parecia ser bem mais velha na aparência. Acanhada e silenciosa, viveu os primeiros dias praticamente trancada no quarto da casa dos primos desconhecidos. Todos ali a achavam esquisita, possivelmente ruim das ideias. Os primos que lhe acolheram tinha lá seus receios. Conrado, o homem da família, que cuidaria dos bens legados a Prima Biela que não era pouca coisa, tinha certeza que ela era pancada como o pai. Talvez tivesse uns acessos de raiva repentinos e daria muito trabalho e preocupação. Constança, mulher de Conrado, colocou como meta de vida fazer de Prima Biela uma dama apresentável de cidade de interior. As crianças caçoavam dela pelos seus modos retraídos e vestimenta pobre. Aos poucos Prima Biela foi relaxando e algumas palavras foram proferidas baixinho. Com isso perceberam que ela não tinha defeitos mentais, era somente muito tímida.
O tempo passa devagar e Prima Biela não consegue se encaixar na cidadezinha mineira. Imitava e obedecia Constança, mas era um arremedo. Roupas novas, fazer sala e visitas sociais, rezar e frequentar a igreja. Prima Biela tentava fazer essas coisas porem não acertava o tom. Ate para comer a mesa era um desastre de etiqueta. Aos poucos foi tendo mais contado e convivência com a criadagem na cozinha, ficando assim mais confortável, e os parentes a deixaram em paz. Prima Biela não tinha jeito. Era muito bronca e ficaria matuta para sempre.
Mas Prima Biela tinha uma existência rica. Na sua cabeça, os pensamentos rolavam com as lembranças da fazenda e da vida silvestre no mato ao redor. Os ruídos, os cheiros, a enevoada memoria afetiva da mãe. O pouco estimulo que lhe atraia na vida nova, era passageiro e decepcionante. A descoberta da musica tocada no piano da família por uma mocinha bonitinha, os casamentos intercalados dos mais velhos, um noivado malfadado, alguma amizade com as empregadas das casas vizinhas e o papo mirrado com o capataz que vinha dar conta do que acontecia na fazenda afastada. Isso é o resumo amplo de como Prima Biela atravessava seus dias. É lhe bastava.
Na velhice encontrou um cachorro magro que parecia perdido nas ruas iluminadas por postes elétricos. Ela o acolheu e essa foi a sua alegria final. Morreu como viveu; em silencio, sem drama, sem choro miúdo ou risadas abertas. Viveu para si, no seu mundo de simplicidade.
E uma estória sobre o que acontece dentro da cabeça pode ser o suficiente. Uma vida agitada não é para todos. Felicidade está na valorização das pequenas coisas. Meio clichê, mas quem ai vai dizer que é mentira?
A única coisa que tenho para reclamar e que essa edição que li não só tem uma, mas duas coisas inúteis. A primeira é uma introdução acadêmica que interpreta o texto e com isso conta metade do enredo da novela, e a segunda é o autor da obra explicando como teve a ideia da estória, lhe venho num sonho, e fala dos seus métodos gerais para a construção dessa narrativa e de outras obras dele. Um porre. Um estória, e tão simples como essa, é auto explicável e não carece de nenhum complemento.