Carla.Parreira 16/11/2023
O primo Basílio
O autor ataca uma das instituições tidas como mais sólidas para a época (1878): o casamento. Ele cria uma narração literária apoiada na analise objetiva da realidade, aparecendo como um observador imparcial, que vê os acontecimentos com neutralidade e dominando as informações sobre o contexto em que o enredo acontece. Logo no primeiro capitulo o autor lança as tramas de um conflito que dá pretexto para o conflito do tema central: o adultério. Jorge viaja contrariado, a trabalho, e sua esposa Luisa descobre que seu primo Basílio, por quem outrora foi noiva, está na cidade. Essa notícia evoca vastas lembranças do passado. A revelação amorosa clandestina mantida por Luisa e Basílio é descoberta pela criada Juliana que, cheia de ódio e de posse de uma carta dos amantes, chantageia a patroa. Abandonada pelo amante que foge para Paris, Luisa não suporta a tensão e morre. É próprio de obras do naturalismo modelar personagens de fora para dentro a partir de circunstâncias e valores sociais que determinam suas reações e comportamentos, as vezes tão esquemático que mais parecem caricaturas. No naturalismo o homem é observado como um animal que tem o comportamento determinado pelo meio ambiente, pelas circunstâncias que o pressionam e a hereditariedade. Luisa é uma senhora sentimental, mal-educada, sem senso de justiça, lírica, romântica e ociosa. Ela se envolve com Basílio por mera curiosidade mórbida em ter um amante, além de certo desejo físico. Malicioso e cheio de truques para atrair a amante enquanto explora a sua vaidade fútil, Basílio compara a fidelidade conjugal a uma demonstração de atraso das mulheres de Lisboa frente aos hábitos supostamente liberais e modernos das senhoras de Paris, todas com seus amantes. Juliana se conduz pela revolta (não suporta sua condição de serviçal), pela frustração (fracassou na tentativa de mudar de vida) e pelo ódio rancoroso contra a patroa (e todas as anteriores que lhe fustigaram por vinte anos). Mais do que dinheiro, ela quer a desforra. E os recursos que utiliza levarão ao definhamento físico e emocional da patroa, sendo esse o desfecho da historia.
Eis algumas das partes que achei mais marcante. Inicialmente o sentimento de Luisa ao rever Basílio: ?...Havia sete anos que não via o primo Basílio! Estava mais trigueiro, mais queimado; mas ia-lhe bem! E depois de jantar ficou junto à janela, estendida na voltaire, com um livro esquecido no regaço. O vento caíra e o ar, de um azul forte nas alturas, estava imóvel; a poeira grossa pousara; a tarde tinha uma transparência calma de azul; pássaros chilreavam na figueira-brava; da serralheria próxima saía o martelar contínuo e sonoro de folhas de ferro. Pouco a pouco o azul desbotou; sobre o poente, laivos de cor de laranja desmaiada esbateram-se como grandes pinceladas desleixadas. Depois tudo se cobriu de uma sombra difusa, calada e quente, com uma estrelinha muito viva que luzia e tremia. E Luisa deixara-se ficar na voltaire esquecida, absorvida, sem pedir luz. Que vida interessante a do primo Basílio! ? pensava. ? O que ele tinha visto! Se ela pudesse também fazer as suas malas, partir, admirar aspectos novos e desconhecidos, a neve nos montes, cascatas reluzentes! Como desejaria visitar os países que conhecia dos romances ? a Escócia e os seus lagos taciturnos, Veneza e os seus palácios trágicos; aportar às baias, onde um mar luminoso e faiscante morre na areia fulva; e das cabanas dos pescadores, de teto chato, onde vivem as Grazielas, ver azularem-se ao longe as ilhas de nomes sonoros! E ir a Paris! Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajara decerto; eram pobres; Jorge era caseiro, tão lisboeta! Como seria o patriarca de Jerusalém? Imaginava-o de lonas barbas brancas, recamado de ouro, entre instrumentações solenes e rolos de incenso! E a princesa de La Tour d?Auvergne? Devia ser bela, de uma estatura real, vivia cercada de pajens, namorara-se de Basílio. ? A noite escurecia, outras estrelas luziam. Mas de que servia viajar, enjoar nos paquetes, bocejar nos vagões, e, numa diligencia muito sacudida, cabecear de sono pela serra nas madrugadas frias? Não era melhor viver num bom conforto, com um marido terno, uma casinha abrigada, colchões macios, uma noite de teatro às vezes, e um bom almoço nas manhãs claras quando os canários chilram? Era o que ela tinha. Era bem feliz! Então veio-lhe uma saudade de Jorge; desejaria abraça-lo, tê-lo ali, ou quando descesse ir encontrá-lo fumando o seu cachimbo no escritório, com o seu jaquetão de veludo. Tinha tudo, ele, para fazer uma mulher feliz e orgulhosa: era belo, com uns olhos magníficos, terno, fiel. Não gostaria de um marido com uma vida sedentária e caturra; mas a profissão de Jorge era interessante; descia os poços tenebrosos das minas; um dia acirrara as pistolas contra uma malta revoltada; era valente; tinha talento. Ia voluntariamente, porém, o primo Basílio fazendo flutuar o seu bornous branco pelas planícies da Terra Santa, ou em Paris, direito na almofada, governando tranquilamente os seus cavalos inquietos ? davam-lhe a ideia de uma outra existência mais poética, mais própria para os episódios do sentimento...?
A saudade do marido, a certeza de que ela o amava e a mistura da insensatez com a postura de vítima: ?...Depois do jantar, à janela da sala, ficou a reler a carta de Jorge. Pôs-se a recordar de propósito tudo o que a encantava nele, do seu corpo e das suas qualidades. E juntava ao acaso argumentos, uns de honra, outros de sentimento, para o amar, para o respeitar. Tudo era por ele estar fora, na província! Se ele ali estivesse ao pé dela! Mas tão longe, e a demorar-se tanto! E ao mesmo tempo, contra sua vontade, a certeza daquela ausência dava-lhe uma sensação de liberdade...?
A sagacidade do primo Basílio na intenção de influenciar Luisa à infidelidade: ?...Muito habilmente, Basílio não falou no passeio, nem no campo. Não falou também do seu amor, nem dos seus desejos. Parecia muito alegre, muito superficial; tinha-lhe trazido o romance de Belot, A mulher Fogo. E sentando-se ao piano, disse-lhe canções de caféconcerto, muito picantes; imitava a rouquidão acre e canalha das cantoras; fê-la rir. Depois falou muito de Paris; contou-lhe a moderna crônica amorosa, anedotas, paixões chiques. Tudo se passava com duquesas, princesas, de um modo dramático e sensibilizador, às vezes jovial, sempre cheio de delícias. E, de todas as mulheres de que falava, dizia recostando-se: Era uma mulher distintíssima; tinha naturalmente o seu amante. O adultério aparecia assim um dever aristocrático. De resto a virtude parecia ser, pelo que ele contava, o defeito de um espírito pequeno, ou a ocupação reles de um temperamento burguês...?
A explicação da infidelidade para si mesma: ?...Porque nos temperamentos sensíveis as alegrias do coração tentem a completar-se com as sensualidades do luxo; o primeiro erro que se instala numa alma até aí defendida, facilita logo aos outros entradas tortuosas; assim, um ladrão que se introduz numa casa vai abrindo sutilmente as portas à sua quadrilha esfomeada... Ela mesma se espantava de se sentir tão tranquila. E todavia impacientava-a ter constantemente aquela ideia no espírito, impassível, com uma obstinação espectral; punha-se instintivamente a acumular as justificações: Não fora culpa sua. Não abrira os braços a Basílio voluntariamente! Tinha sido uma fatalidade, fora o calor da hora, o crepúsculo, uma pontinha de vinho talvez. Estava doida, decerto. E repetia consigo as atenuações tradicionais: não era a primeira que enganara seu marido; e muitas era apenas por vício; ela fora por paixão. Quantas mulheres viviam num amor ilegítimo e eram ilustres, admiradas! Rainhas mesmo tinham amantes...?
O caráter ladino e abusador de Basílio: ?...E lentamente, vendo aquela docilidade, Basílio não se dava ao incomodo de se constranger; usava dela, como se a pagasse!..?
O declínio da paixão de Luisa por Basílio e o seu temperamento insatisfeito: ?...É que o amor é essencialmente perecível, e na hora em que nasce começa a morrer. Só os começos são bons. Há então um delírio, um entusiasmo, um bocadinho do céu. Mas depois! Seria pois necessário estar sempre a começar, para poder sempre sentir?... E, pela lógica tortuosa dos amores elegemos, o seu primeiro amante fazia-a vagamente pensar no segundo!...?
Luisa conta para Basílio que a criada Juliana sabe de tudo sobre eles e a chantageia querendo seiscentos milréis. Ela propõe de ir embora com Basílio, mas ele não permite e diz que vai partir sozinho. Sozinha, Luiza se amarga no arrependimento: ?...O trem rolou. Era o numero 10. Nunca mais o veria! Tinham palpitado no mesmo amor, tinham cometido a mesma culpa. ? Ele partia alegre, levando as recordações romanescas da aventura; ela ficava, nas amarguras do erro. E assim era o mundo! Veio-lhe um sentimento pungente de solidão e de abandono. Estava só, e a vida aparecialhe como uma vasta planície desconhecida, coberta da densa noite, eriçada de perigos! Entrou no quarto devagar, foi-se deixar cair no sofá; viu ao pé o saco de marroquim, que preparara na véspera para fugir; abriu-o; pôs-se a tirar lentamente os lenços, uma camisinha bordada, - encontrou a fotografia de Jorge! Ficou com ela na mão, contemplando o seu olhar leal, o seu sorriso bom. ? Não, não estava no mundo só! Tinha-o ele! Amava-a aquele;nunca a traíra, nunca a abandonaria! ? E colando os beiços ao retrato, umedecendo-o de beijos convulsivos, atirou-se de bruços, lavada de lágrimas, dizendo: - Perdoa-me, Jorge, meu Jorge, meu querido Jorge, Jorge da minha alma!...?
A culpa faz vibrar em Luisa um amor devotado e profundo: ?...Admirava-o, de um modo ardente. Quando se atirara aos seus braços naquela madrugada, sentira como abrir-se-lhe o coração, e um amor repentino revolver-lho deliciosamente; viera-lhe um desejo de o adorar perpetuamente, de o servir, de o apertar nos braços até lhe fazer mal, de lhe obedecer com humildade; era uma sensação múltipla, de uma doçura infinita, que a transpassara até as profundidades do seu ser...?
A criada toma o lugar da patroa quando Jorge não está em casa: ?...Juliana, bem alojada, bem alimentada, com roupa fina sobre a pele, colchões macios, saboreava a vida; o seu temperamento adoçara-se naquelas abundâncias... E no meio daquela prosperidade ? Luisa definhava-se. Até onde iria a tirania de Juliana?...?
Contrição perpétua e necessidade de consolo: ?...E depois sentia-se tão infeliz que se lembrou de Deus! Necessitava alguma coisa de superior, de forte a que se amparar. Foi-se ajoelhar ao pé de um altar, persignou-se, rezou o Padre-Nosso, depois a Salve-Rainha. Mas aquelas orações, que ela recitava em pequena, não a consolavam; sentia que eram sons inertes que não iam mais alto no caminho do céu que a sua mesma respiração; não as compreendia bem, nem se aplicavam ao seu caso; Deus, por elas, nunca poderia saber o que ela pedia, ali, prostrada na aflição. Quereria falar a Deus, abrir-se toda a Ele; mas com que linguagem? Com as palavras triviais, como se falasse a Leopoldina! Iriam as suas confidencias tão longe que O alcançassem? Estaria Ele tão perto que a ouvisse? E ficou ajoelhada, os braços moles, as mãos cruzadas no regaço, olhando as velas de cera tristes, os bordados desbotados do frontal, a carinha rosada e redonda de um Menino Jesus!...?
Ao final da história, Sebastião, amigo de Luisa e Jorge, consegue obrigar Juliana a lhe entregar as cartas. No meio da contenda Juliana acaba morrendo repentinamente de um aneurisma. Luisa sente-se aliviada, mas pouco adianta, pois não consegue mais recuperar seu bom estado de saúde. Além disso, Jorge recebe em suas mãos uma carta de Basílio endereçada para Luisa. Curioso ele a lê, descobre superficialmente sobre a traição, mas nem tem como cobrar uma resposta de Luisa, pois ela já está à beira da morte. Jorge chora pela perda da esposa enquanto Basílio, ao ficar sabendo, ainda faz pouco caso dizendo que Luisa não era uma amante chique, era sim um trambolho, só uma pobre coitada. Seu cinismo é tanto que ele diz ao amigo que teria sido melhor se ele houvesse trazido consigo uma amante de Paris. Basílio é um completo mau caráter, daquele que, com absoluta certeza, um dia receberá o troco da sua tirania de conquistador. É um ótimo livro para fazer-nos sentir que uma traição sempre carrega uma amarga culpa, gerando raiva e ódio, formando um forte e invisível corrosivo interior.