spoiler visualizarBananinha 11/09/2021
Ótimo! !!!!
Eça de Queiroz, em uma carta a Ramalho Ortigão, escrita em novembro de 1877, falando sobre sua obra recém-completada, ?O Primo Basílio?, faz uma autocrítica interessante, quando fala sobre os seus personagens:
?Acabei ?O Primo Basílio? ? uma obra falsa, ridícula afetada, disforme, piegas e paupolosa, isto é, toda a propriedade da papoula ? somnolificente. A propósito, que lhe parece V. o trecho publicado no Diário da Manhã? Idiota, não é verdade? ?Cen?est pas ça du tout?. O estilo tem limpidez, fibra transparência ?netteté?. Mas a vida não vive. Falta ?peigne?. Os personagens e você verá ? não tem vida que nós temos: não são inteiramente ?des images decoupés? ? mas tem uma musculatura gelatinosa; oscilam, fazem beiço como os queijos da Serra, pesapam, derretem. Há inquestionavelmente algumas cenas corretas: e há maravilhas de habilidade, da habilidade de ?Métier?; enfim sou uma besta. E o que é triste é que me desespero por isso. Nunca hei de fazer algo como ?Pai Goriot?: e você me conhece a melancolia em tal caso a palavra ?nunca?! Não falo naturalmente de ?O Primo Basílio? ? isso é uma ninharia abaixo da crítica de Penafiel, mas mesmo este novo romance ? de que estou tão contente ? ?não dá, não sai?. Faço mundo de cartão, não sei fazer ?carne nem alma? Como é? Como será? E todavia não me falta processo: tenho-o superior a Balzac, a Zola, ?Tutti quanti?. Falta qualquer ?coisinha? dentro: a pequena vibração cerebral sou uma irremissível besta.?
Escritores detonando sua própria obra não é uma particularidade de Eça de Queiroz. Leon Tolstoi detonou ?Guerra e Paz? com os piores adjetivos possíveis, e muitos outros escritores já se utilizaram desse exercício de autoimolação. Algumas frases em que critica a si mesmo, como ?(...) faço mundos de cartão?, ?(...) Não sei fazer carne nem alma?, são a comprovação de que seus personagens têm um caráter muito mais fantástico do que real. E o que é na verdade criar almas? É presentar ?(...) não o homem dominado pela sociedade, entorpecido pelos costumes, deformado pelas instituições, transformado pela cidade, mas o homem livre colocado na livre natureza, entre as livres paixões?.
Para Eça, esses exemplos de criação de almas estão em Shakespeare e em Balzac. O primeiro revelou ?(...) a natureza espontânea: soltou as paixões em liberdade e mostrou sua livre ação? e Balzac, na visão de Eça, ?(...) realiza seu destino longe da associação humana, sob a lógica das paixões?. Em geral, Eça de Queiroz, ao contrário de Balzac e Flaubert, focava suas análises muito mais no aspecto social do que no psicológico. A versão da realidade em Eça de Queirós era a ironia que faz pensar.
Em ?O Primo Basílio?, o objetivo de Eça de Queiroz é fazer uma crítica poderosa à sociedade portuguesa, onde a futilidade, a imoralidade, a hipocrisia social, a superficialidade nos relacionamentos, a falsidade e a arrogância do poder econômico criam tipos de indivíduo mesquinhos.
Vamos ao livro? Luísa vive uma vida entediada na cidade de Lisboa com seu marido, o previsível engenheiro Jorge. Através de leituras e fantasias românticas vindas de livros ou de conversas dela com sua amiga Leopoldina, vemos a representação de um romantismo ingênuo e inconsequente em suas atitudes. Até que certa vez seu marido, Jorge, viaja a trabalho e Luísa recebe a visita de um antigo namorado, seu primo rico chamado Basílio, que vivia em Paris, recém-chegado de uma viagem a trabalho ao Brasil. Paris sempre foi o sonho de consumo de Luísa. Tornam-se amantes e passam a se encontrar frequentemente em um quarto alugado especialmente para encontros amorosos.
Basílio era um bom vivant, conquistador, cínico, um homem que não se relacionava muito bem com a ética amorosa, jogando sempre com o sentimento alheio, um perfeito janota compromissado com os seus desejos sexuais. Logo a criada Juliana descobre o relacionamento e intercepta a correspondência da patroa, escondendo as cartas comprometedoras de Luísa a Basílio. À mercê da empregada, Luísa torna-se pouco a pouco uma verdadeira presa nas mãos de Juliana: é obrigada a fazer o serviço doméstico em lugar da criada e sua situação fica insustentável. A criada passa a fazer chantagem com a patroa, e Luísa, desesperada, propõe a Basílio que fujam. Este não aceita a proposta da amante e parte sozinho para Paris.
A aventura ?romântica? de Luísa é vista sem nenhum romantismo; ao contrário, é desnudada pelas lentes implacáveis do realismo, que, nessa época, Eça abraçava com fervor, utilizando-o como método de análise para elaborar um amplo e devastador quadro crítico da sociedade portuguesa. Eça estava influenciado pelas ideias revolucionárias de Proudhon, e seu realismo traduz as ideias de seu mestre.
Em ?O Primo Basílio?, Eça de Queiroz faz a sua crítica à pequena burguesia e à família. Mas não fica só por aí. O famoso Conselheiro Acácio, que representa um formalismo afetado, mantém uma relação secreta com sua criada Leopoldina e todos seguem vivendo a fantasia da normalidade da sociedade portuguesa.
O livro é espetacular, muito bem escrito, e não foi à toa que Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Montes, na música ?Amor I Love You?, citam ?O Primo Basílio?.
?Tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que
lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor
amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!?
Fico por aqui sugerindo essa obra-prima. ?O Primo Basílio?, de Eça de Queiroz, merece um lugar na sua estante.