jota 25/05/2022Utz, putz! Livro traz personagem singular, mas é de leitura bem mais complexa do que outras conhecidas obras de Chatwin Lido entre 15 e 23/05/2022.
Tempos atrás li do mesmo Bruce Chatwin (1940-1989), O Vice-Rei de Uidá (1980), interessante livro que tem como pano de fundo as relações escravocratas Brasil-África, com destaque para a figura do negreiro Da Silva. Pouco tempo depois foi a vez do ótimo Colina Negra (1982), passado no País de Gales, e que narrava a vida de dois irmãos, Lewis e Benjamin Jones, que cresceram isolados da história do século XX. Em Utz (1988), da mesma forma, Chatwin está interessado no estudo de personagens, nesse caso um tcheco de origem judaica, Kaspar Utz, colecionador de porcelanas de Meissen, cidade alemã famosa por sua produção de delicadas estatuetas desse material.
Utz era dono de uma coleção que contava com mais de mil desses objetos valiosos, acumulados em seu pequeno apartamento em Praga. Havia protegido suas peças e aumentado o número delas desde os tempos da Gestapo alemã. Mas agora a Tchecoslováquia -- a República Tcheca e a Eslováquia surgiram apenas em 1993, resultado da divisão do país em dois -- fazia parte da chamada Cortina de Ferro, imposta pelos russos. Ele podia deixar Praga e retornar uma vez por ano à cidade, mas partir com algumas estatuetas era sempre um risco: as autoridades viam nelas sinais de decadência e corrupção burguesas. Então, se era dono dos cobiçados objetos, ao mesmo tempo eles governavam sua vida: Utz sentia-se prisioneiro de sua coleção e também do estado comunista.
Em torno desse dilema se desenvolve a história de um homem obsessivo. Kaspar Utz, que era pouco afeito a afetos e relacionamentos duradouros com mulheres, apenas com suas peças. Ficamos conhecendo um pouco mais de sua vida conforme avança o relato de um escritor, que passou algumas horas com Utz e com sua empregada Marta -- ele está tentando escrever a biografia do colecionador. Mas as coisas – quer dizer, essa narrativa que o resenhista do Washington Post chamou de triunfal por sua singularidade – não são tão simples assim para o leitor comum. Porque o relato envolve muita erudição, história, fábulas e observações sobre cultura. Então, não temos (bem, eu não tive) um retrato tão claro assim do personagem como ocorria nos outros livros de Chatwin citados no início desses comentários.
Para o pensador inglês John Gray, que analisou o livro de Chatwin no ótimo Cachorros de Palha (Record, 2005), podemos tirar do livro uma lição sobre moralidade. No caso, a falta dela, conforme anota Gray: “Utz vivia indiferente ao longo dos piores anos da história de seu país. Para ele, a ocupação nazista da Tchecoslováquia e o golpe comunista que logo se seguiu eram oportunidades de aumentar sua coleção de porcelana. Todos os seus contatos humanos serviam a essa paixão. Estava pronto a colaborar com qualquer regime, desde que o ajudasse a conseguir mais dos belos objetos pelos quais ansiava.” Hum... Entendeu?
Eis aí, portanto, outro modo de ver as coisas: Utz não passava de um “homenzinho comum”, como o chamou o narrador, centrado em si mesmo, em sua coleção e, como ele, e aqui volto a citar Gray, usamos a moralidade “[...] nas histórias que contamos a nós mesmos e a outros sobre nossas vidas para dar a elas um sentido que, de outro modo, lhes faltaria. Mas, ao fazer isso, obscurecemos a verdade sobre como vivemos.” Como Utz vivia, enfim. Na infindável busca -- uma peça leva a outra, que leva a outra... -- por novos objetos para sua coleção estaria Utz buscando a eternidade num mundo de faz-de-conta? Possivelmente...