Teoria Pura do Direito

Teoria Pura do Direito Hans Kelsen




Resenhas - Teoria Pura do Direito


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pontarolli 27/10/2023

Notas sobre a Teoria Pura do Direito
Antes de adentrar à análise dos capítulos da Teoria Pura do Direito, é relevante fazer algumas reflexões preliminares. O próprio Hans Kelsen, em seus prefácios, registra o fato de que a sua construção teórica é incompreendida por muitos, o que seria, ao seu sentir, uma espécie de comprovação da adequação da “Teoria Pura do Direito”. É o que se extrai do seguinte trecho:

“Mas qual das afirmações é verdadeira? Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é - asseguram muitos - aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros creem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha ainda tornado suspeita. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria o poderia fazer, a sua pureza”. (VIII)

De início já é possível perceber que Kelsen quis estabelecer uma adequação metodológica para a ciência jurídica, isolando-a de elementos valorativos e diferenciando-a da política jurídica. Em síntese, Kelsen estabelece um princípio metodológico fundamental:

“Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental”. (1)

Como explica Kelsen, ele quer evitar um “sincretismo metodológico”, o que acontece quando se mistura a cognição do direito com a psicologia, a ética, a sociologia e a teoria política (os objetos de compreensão são distintos).

A partir desta proposta metodológica, Kelsen passa, então, a fazer as diferenciações necessárias para isolar o objeto de compreensão das ciências jurídicas. Primeiro difere direito e natureza e depois difere direito e moral. Feitas as distinções propõe as bases da ciência jurídica, de forma detalhada.

2. DIREITO E NATUREZA

Hans Kelsen inicia a sua proposição teórica a partir da distinção entre as ciências naturais e as ciências normativas. As ciências naturais seguem o método causal, sendo que as realizações humanas (condutas) podem ser empiricamente observáveis através das relações entre causa e efeito, mas a conduta em si não é o componente da ciência jurídica, o que poderia gerar certa confusão, mas sim o é a construção normativa que confere sentido jurídico à referida conduta.

Desta forma, é possível dizer que o objeto da ciência jurídica é a norma, estruturada a partir da concepção de dever ser. A norma descreve a conduta (condição) e estabelece o efeito coativo decorrente (consequência). Se “A” for, logo “B” será. Eis o ponto central: importa ao direito a significação jurídica conferida à conduta. É o que se depreende:

“Se analisarmos qualquer dos fatos que classificamos de jurídicos ou que têm qualquer conexão com o Direito - por exemplo, uma resolução parlamentar, um ato administrativo, uma sentença judicial, um negócio jurídico, um delito, etc. -, poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato que se realiza no espaço e no tempo, sensorialmente perceptível, ou uma série de tais atos, uma manifestação externa de conduta humana; segundo, a sua significação jurídica, isto é, a significação que o ato tem do ponto de vista do Direito”. (02)

Uma conduta por si não pode ser caracterizada como ato jurídico (lícito ou ilícito) se não possuir significado jurídico. A conduta humana segue a lei da causalidade e para ser transformada em ato jurídico é preciso que tenha significado objetivo. É este significado, ou sentido, conferido apenas pela norma, que lhe permite ser interpretado juridicamente (ver exemplo do “Bando de Salteadores”).

Neste primeiro capítulo da Teoria Pura do Direito, Kelsen já inicia a formulação de algumas ideias que serão repetidas no decorrer da obra, a exemplo do caráter coativo do direito (posteriormente utilizado para diferenciá-lo da moral) e trata das distinções entre regulamentação positiva e negativa, adentrando conceitualmente às normas de atribuição de competência (revistas no capítulo sobre “dinâmica jurídica”).

3. DIREITO E MORAL

A partir da distinção estabelecida entre ciências naturais e normativas, o autor se depara com a necessidade de distinção entre o direito e a moral, enquanto objetos a serem apreendidos respectivamente pela ciência jurídica e pela ética.

Importante dizer que a distinção não reside simplesmente no caráter positivo do direito:

“O Direito e a Moral também não se podem distinguir essencialmente com referência à produção ou à aplicação das suas normas. Tal como as normas do Direito, também as normas da Moral são criadas pelo costume ou por meio de uma elaboração consciente (v. g. por parte de um profeta ou do fundador de uma religião, como Jesus). Neste sentido a Moral é, como o Direito, positiva, e só uma Moral positiva tem interesse para uma Ética científica, tal como apenas o Direito positivo interessa a uma teoria científica do Direito”. (44)

De acordo com Kelsen a distinção reside basicamente no caráter coativo das normas jurídicas:

“O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quando - como já mostramos - se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que as suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força física”. (45)

Ainda sobre direito e moral é preciso ter em conta que Kelsen afasta-se da ideia de que o Direito deve possuir um conteúdo moral, notadamente porque não há que se cogitar uma moral absoluta, afinal aquilo que é moral para alguns não é moral para outros. Neste sentido é a afirmação do autor:

“A tese de que o Direito é, segundo a sua própria essência, moral, isto é, de que somente uma ordem social moral é Direito, é rejeitada pela Teoria Pura do Direito, não apenas porque pressupõe uma Moral absoluta, mas ainda porque ela na sua efetiva aplicação pela jurisprudência dominante numa determinada comunidade jurídica, conduz a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva estadual que constitui tal comunidade. [...] Com efeito, a ciência jurídica não tem de legitimar o Direito, não tem por forma alguma de justificar - quer através de uma Moral absoluta, quer através de uma Moral relativa - a ordem normativa que lhe compete - tão-somente - conhecer e descrever”. (49)

4. DIREITO E CIÊNCIA

O cientista do direito deve se portar com neutralidade diante do objeto de estudo, não devendo tecer opiniões carregadas de ideais políticos ou valores pessoais. A ciência do direito para Kelsen deveria ser uma ciência isenta de interferências exógenas. É evidente que o Direito recebe influências, mas tais não devem compor o objeto da ciência jurídica.

“Assim como a lei natural é uma afirmação ou enunciado descritivo da natureza, e não o objeto a descrever, assim também a lei jurídica é um enunciado ou afirmação descritiva do Direito, a saber, da proposição jurídica formulada pela ciência do Direito, e não o objeto a descrever, isto é, o Direito, a norma jurídica. [...]”.

A partir deste ponto Kelsen procura definir com exatidão o objeto da ciência jurídica, um objeto único e coincidente, qual seja a norma jurídica.

“[...] A autoridade que cria o Direito e que, por isso, o procura manter, pode perguntar-se se é útil um conhecimento do seu produto isento de ideologia. E também as forças que destroem a ordem existente e a querem substituir por uma outra, havida como melhor, podem não saber como empreender algo importante com um tal conhecimento jurídico. A ciência do Direito não pode, no entanto, preocupar-se, quer com uma, quer com as outras. Uma tal ciência jurídica é o que a Teoria Pura do Direito pretende ser. [...]”

No estabelecimento das bases da ciência jurídica, Kelsen busca afastar as inúmeras dicotomias propostas pelos estudiosos do direito (Estado x direito; direito objetivo x direito subjetivo; direito público x direito privado), bem como propõe o monismo, a partir da sustentação de um único Direito, composto pelo Direito Internacional e pelo Direito Estadual.

5. ESTÁTICA JURÍDICA

A teoria jurídica estática é aquela que tem por objeto o direito como um sistema de normas em vigor. Isto quer dizer que o estudo normativo, a partir da estática jurídica, recai sobre o dever jurídico (dever ser) e as consequências correspondentes.

“O princípio estático e o princípio dinâmico estão reunidos numa e na mesma norma quando a norma fundamental pressuposta se limita, segundo o princípio dinâmico, a conferir poder a uma autoridade legisladora e esta mesma autoridade ou uma outra por ela instituída não só estabelecem normas pelas quais delegam noutras autoridades legisladoras mas também normas pelas quais se prescreve uma determinada conduta dos sujeitos subordinados às normas e das quais - como o particular do geral - podem ser deduzidas novas normas através de uma operação lógica”. (138)

Quando se fala em estática jurídica está se falando no estudo da norma posta, a partir do estabelecimento do dever jurídico (dever ser) e da consequência coativa (sanção). Kelsen passa a abordar detalhadamente o conteúdo da norma posta, apontando que o ilícito é pressuposto do direito e não a sua negação.

A estática jurídica parte da concepção de “dever ser”, seguindo a lógica de conexão entre condição e consequência, na busca de definição da essência formal das normas. A norma caracteriza uma categoria lógico-transcendental. A norma prescreve uma conduta e uma sanção.

A indenização também pode ser estuda pela perspectiva da estática jurídica, conforme se depreende:

“[...] O fato de que a ordem jurídica obriga à indenização de um prejuízo é corretamente descrito na seguinte proposição jurídica: se um indivíduo causa a outrem um prejuízo e este prejuízo não é indenizado, deve ser dirigido contra o patrimônio de um outro indivíduo um ato coercitivo como sanção, [...]”.

Seguindo a percepção estática, as normas de atribuição de competência seriam fragmentos (partes) da norma jurídica completa.

“Na concepção da jurisprudência tradicional o sujeito jurídico - como pessoa física ou jurídica-, com os “seus” deveres e direitos, representa o Direito num sentido subjetivo; a titularidade jurídica (Berechtigung) designada como direito subjetivo é apenas um caso especial desta noção compreensiva. E o Direito neste sentido subjetivo mais amplo situa-se em face do Direito objetivo, da ordem jurídica, quer dizer, em face de um sistema de normas, como se formasse um domínio distinto. A Teoria Pura do Direito afasta este dualismo ao analisar o conceito de pessoa como a personificação de um complexo de normas jurídicas, ao reduzir o dever e o direito subjetivo (em sentido técnico) à norma jurídica que liga uma sanção a determinada conduta de um indivíduo e ao tornar a execução de sanção dependente de uma ação judicial a tal fim dirigida; quer dizer: reconduzindo o chamado direito em sentido subjetivo ao Direito objetivo”. (133 e 134)

Vale ressaltar que, em vista do descolamento do direito da moral, para Kelsen o estabelecimento da teoria pura não poderia conter concepções jusnaturalistas, até porque o conceito de “justiça” seria algo impreciso e variável.

6. DINÂMICA JURÍDICA

Além da análise da norma posta, Kelsen percebe, a partir da segunda edição de sua obra, que o direito deve ser estudado não apenas em seu caráter estático – enquanto norma posta – mas também deve compor o objeto da ciência do direito a dinâmica criativa das normas. Aqui é que Kelsen se preocupa com a análise do Ordenamento Jurídico, com a estrutura escalonada de normas e com o conceito de norma fundamental.

Sobre a norma fundamental, algumas considerações precisam ser feitas, já que esta funciona como o topo do sistema escalonado.

“Se queremos conhecer a natureza da norma fundamental, devemos sobretudo ter em mente que ela se refere imediatamente a uma Constituição determinada, efetivamente estabelecida, produzida através do costume ou da elaboração de um estatuto, eficaz em termos globais; e mediatamente se refere à ordem coercitiva criada de acordo com essa Constituição, também eficaz em termos globais, enquanto fundamenta a validade da mesma Constituição e a ordem coercitiva de acordo com ela criada3 . A norma fundamental não é, portanto, o produto de uma descoberta livre. A sua pressuposição não se opera arbitrariamente, no sentido de que temos a possibilidade de escolha entre diferentes normas fundamentais quando interpretamos o sentido subjetivo de um ato constituinte e dos atos postos de acordo com a Constituição por ele criada como seu sentido objetivo, quer dizer: como normas jurídicas objetivamente válidas”. (141)

​Quando uma norma provém de uma autoridade, que tenha capacidade legal para isso, isto é, tem competência para estabelecer estas normas válidas por ter uma norma que confira esse poder de fixar normas ou criá-las, essas normas irão ser válidas. Pois, a autoridade através da norma que estabelece seu poder legislativo e tem a competência para exercer esse poder, será a ela submetida também, além, dos indivíduos que devem obediência às normas por ela fixadas.

7. O ESTADO E O DIREITO INTERNACIONAL

Kelsen compreende o Direito Internacional como forma efetiva de direito, plenamente inserida na estruturação da Teoria Pura do Direito. Na interrelação entre Direito Internacional e Direito Estadual, Kelsen adota posição monista, considerando tratar-se de um só direito, o que estaria de acordo tanto na análise estática da norma, quanto na análise dinâmica.

No escalonamento normativo, surgiriam duas possibilidades, ambas inseridas na construção teorética monista, de um lado um escalonamento decorrente do primado do direito estadual e de outro lado um escalonamento decorrente do primado do direito internacional.

Kelsen sustenta posição que confere primado ao direito internacional. Neste ponto, vale consignar a construção do raciocínio do autor:

“Isto é possível porque, como já notamos a outro propósito, o princípio da efetividade, que é uma norma do Direito internacional positivo, determina, tanto o fundamento de validade, como o domínio territorial, pessoal e temporal de validade das ordens jurídicas estaduais e estas, por conseguinte, podem ser concebidas como delegadas pelo Direito internacional, como subordinadas a este, portanto, e como ordens jurídicas parciais incluídas nele como numa ordem universal, sendo a coexistência no espaço e a sucessão no tempo de tais ordens parcelares tornadas juridicamente possíveis através do Direito internacional e só através dele. Isso significa o primado da ordem jurídica internacional”.

Por esta concepção, é possível perceber que, na estrutura escalonada de normas, as normas de direito internacional estariam em um escalão superior, notadamente o direito internacional geral, formado sobretudo pelos costumes decorrentes das relações entre estados.

Kelsen pondera, ainda, que o reconhecimento do primado do direito internacional é uma forma relevante de manutenção da paz entre os estados, pois estes deixam de ter liberdade absoluta quanto a agredir outros estados.

8. INTERPRETAÇÃO

Kelsen parte da diferenciação entre interpretação autêntica e não autêntica. A interpretação autêntica é aquela realizada pelo órgão responsável pela aplicação da norma, enquanto que a interpretação não autêntica é aquela realizada pelo destinatário da norma e pela própria ciência jurídica.

Ora, se a norma pode ser interpretada pelo órgão aplicador, isto decorre da indeterminação da norma, a qual pode ser intencional ou não intencional. A indeterminação não intencional da norma decorre, via de regra, da imprecisão linguística, a qual acaba originando divergências de sentidos conferidos pelos intérpretes. A indeterminação intencional é aquela estabelecida pelo legislador para conferir discricionariedade ao aplicador do direito, a fim de que este “crie” a norma individual, com margem de liberdade, para melhor adequação ao caso concreto.

É claro que o legislador, sobretudo na indeterminação intencional, define certos limites, ou seja, constrói aquilo que Kelsen denomina de “moldura”, a fim de que o aplicador interprete a norma, mas sem fugir dos limites da moldura.

Kelsen também salienta que não existe uma única interpretação correta, o que merece destaque:

“A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente”. (251)
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