Jamy Jones 10/10/2013
"Um livro que diverte, irrita, inspira e consola"
Em meio ao "milagre econômico, ufanismo e repressão" da ditadura militar brasileira, Chico Buarque faz uma analogia criativa e bem humorada entre o ser humano e o gado.
O gado vivia preso sob as cercas de aço da Fazenda; os brasileiros, de alguma forma, também. O gado estava submetido à vontade do patrão; os bois deveriam fornecer lucro para a fazenda sem questionar, e os que questionassem eram considerados subversivos, e tinham uma das pernas amputadas.
Além disso, a Fazenda, assim como o Brasil, estava passando por um período de crescimento econômico; "O bolo deve crescer para depois ser dividido".
Os subversivos eram muitos - caso de Ladislau.
"Esse era um inversivo. Sempre contrariando o ambiente, era uma camaleão às avessas. Recusava vitamina, tomava animativ. Canhoto, assinva o codinome: Ualsidal. Invertia o prato e a gaveta, queria virar o globo de cabeça para baixo e chamar o pólo sul de pólo norte, por que não? Plantava bananeira e soltava gargalhadas da nossa posição ortodoxa. Gostava também de tossir para dentro, pode? Assobiava com o nariz. Marchava à ré, entendem? Isto é um inversivo. Ativo. Nocivo porque cochicava no ouvido dos inofensivos. Sendo que acabou cativo em local distante, em box solitário onde tempos permaneceu, morto ou vivo."
E assim, caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, os chamados "inversivos" buscavam uma identidade; autonomia; liberdade. Em caras de presidentes, em meio à espaçonaves e guerrilhas, tentavam buscar uma ideologia, queriam conhecer novos horizontes e se libertar daquela opressão, mesmo convivendo com o medo. "(...) E Lubino queria saber como é que um corpo encosta no outro. Com estupor, Lubino queria saber como é que um corpo tem que se esfregar no outro corpo. Para que precisa um corpo envolver o outro e contar mentira no ouvido do outro corpo. Por que é que, apesar de tudo, um corpo quer sempre entranhar no outro corpo e quer entrar na boca e morder e cravar as unhas no outro corpo e depois quer estranhar a temperatura do outro até que os dois corpos concordam e se fundem numa temperatura comum, por que?"
A repressão à liberdade de expressão imposta pelo AI-5 não deixava ninguém ter opinião própria, a menos que não contrariasse a vontade dos poderosos. E as penas impostas aos subversivos eram severas, sendo o exílio a mais comum.
"- Os adoradores da besta (a de sete cabeças e dez chifres, e dez diademas nos chifres e títulos blasfemos nas cabeças) não terão descanso, nem de dia de noite. Padecerão em fogo e enxofre. Cairão no abismo de onde sairá uma fumaça como a de uma grande fornalha. dessa fumaça irromperão gafanhotos dotados de poderes semelhantes aos dos escorpiões da terra. A esses gafanhotos será dado o poder de não matar os adoradores da besta, mas de os atormentar durante cinco meses. O tormento que causarão será como o provocado por um escorpião quando pica uma pessoa. Naqueles dias os adoradores da besta procurarão a morte e não a encontrarão. Desejarão morrer, mas a morte fugir-lhes-á."
Esse livro serve para ilustrar o sofrimento vivido pela população brasileira no período de 64-85. Foram 21 anos de "crescimento econômico" - sem divisão de riquezas - e de intensas repressões e perseguições políticas. Mesmo com tudo isso, o brasileiro, com seu espírito persistente e invencível, não desistiu de lutar pelos seus direitos democráticos.