Outrofobia

Outrofobia Alex Castro




Resenhas - Outrofobia


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Moitta 26/03/2019

Minhas notas do livro

Outrofobia. Rejeição, medo ou aversão ao Outro. Termo genérico utilizado para abar- car diversos tipos de preconceito ao Outro, como machismo, racismo, homofobia, elitismo, transfobia, classismo, gordofobia, capacitismo, intolerância religiosa, etc.

Nesse livro, para chamar atenção para o sexismo de nossa língua, estou invertendo a norma e usando o feminino como gênero neutro.
***
Digamos que um parque conta com dez animais da espécie Panthera
leo.
De acordo com as regras atuais da língua portuguesa, só podemos dizer que “existem dez leoas no parque” se temos certeza que os dez animais são fêmeas.
Por outro lado, falamos que “existem dez leões no parque” se:
1) temos certeza que os dez animais são machos.
2) se houver ao menos um macho no grupo.
3) se não soubermos nada sobre os gêneros dos animais.
***
Inverti a regra.
Agora, uso o masculino somente na opção 1, quando tenho certeza que o indivíduo ao qual me refiro é masculino.
Para as opções 2 e 3, uso o feminino.

Talvez a grande contribuição da filosofia durante o último século tenha sido essa:
As palavras importam. A linguagem molda o mundo.
Vale a pena brigar por isso. Não é uma luta vã.

Pior ainda são aquelas pessoas (muitas negras) que são contra as cotas (e similares) argumentando que “nunca precisaram delas”.
E eu faço uma cara pensativa e respondo:
Concordo, claro, como não? E tem mais, também sou contra esse negócio de diálise em hospitais públicos e rampas para cadeirantes nos prédios. Oras, se passei a vida inteira sem precisar de nenhuma dessas coisas, é porque não são tão importantes assim, certo?
Afinal, dado que eu sou o centro do universo e a medida de todas as coisas, as pessoas só deveriam receber o que eu recebi e as únicas necessidades válidas são as que eu também tenho!

Provando que não foi de repente que nos tornamos o povo que faz subir pelo elevador de serviço a doméstica que faz o nosso serviço sujo, em 1770 o desembarque de pessoas escravizadas é proibido no porto principal da cidade (onde hoje fica a Praça XV e o Paço Imperial) e transferido exclusivamente para o distante e discreto Valongo.
Afinal, quando se está chegando de um grand tour pela Europa, a última coisa que se quer ver é uma pessoa negra, nua e escravizada, agonizando no cais perto de você! Pelo amor, né!
Por fim, em 1843, com cada vez mais vergonha da escravidão que lhe pagava as contas, o Império desativa e aterra o Cais do Valongo, construindo por cima dele o elegante Cais da Imperatriz.
E fim de história. Assim, esqueceu-se o Valongo. Afinal, como canta o Hino de República, “nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país!”

A Polícia Militar não invade do mesmo jeito a cobertura do descendente da pessoa escravista e o barraco do descendente da pessoa escravizada.

O Brasil gosta de se pensar vivendo em uma democracia racial. Adora bater no peito e citar que nossa miscigenação e nossos casamentos interraciais provam que não somos racistas.
Mas até mesmo a própria dinâmica desses casamentos interraciais só faz comprovar tanto o machismo quanto o racismo estruturais da sociedade brasileira. São sempre as pessoas negras que terminam morrendo mais cedo, sendo mais presas, ganhando menos. São sem- pre as mulheres que terminam trabalhando mais, ganhando menos, sofrendo mais violências.
E, quando analisamos os números dos casamentos interraciais no Brasil, cujo mercado matrimonial acontece num contexto profundamente machista e racista, são as mulheres negras, duplamente subalternas, que sofrem mais.
Para onde quer que olhemos, seja para os números dos casamentos interraciais, para a composição racial das pessoas universitárias ou para as estatísticas de vítimas de violência, todos os números só fazem comprovar nosso racismo e nosso machismo.

Machismo é a dominação do homem sobre a mulher.
Os dois termos não são, nunca serão, não podem ser análogos. É uma falsa simetria. É como reclamar de não haver um dia da Consciência Branca.
(Explicando rapidamente a diferença: uma camisa “100% branco” é de profundo mau-gosto, ao mostrar quem está por cima celebrando sua hegemonia. “100% negro”, por outro lado, é a celebração de uma identidade marginalizada tentando se afirmar contra todas as desvantagens inerentes no sistema.)
O machismo, por definição, é antimulher mas o feminismo não é, nunca foi, nunca será antihomem. O inimigo do feminismo não é você, homem de carne e osso lendo esse texto, mas a estrutura machista da nossa sociedade.

O feminismo não defende que homens e mulheres são biologicamente iguais, mas sim que devem ter direitos iguais.
Muitas vezes, entretanto, só se alcança a igualdade ou equivalência de direitos justamente atentando para as diferenças. A expressão constitucional “todas as pessoas são iguais perante a lei” é mais corretamente interpretada: “tratar diferentemente as pessoas desiguais para que tenham acesso equivalente ao direito que a lei confere a todas as pessoas”.

Para os homens, não basta simplesmente não estuprar: é preciso não alimentar a cultura do estupro.
A violência contra a mulher não acontece num vácuo: ela é possibilitada por todo um contexto de piadas machistas, de objetificação feminina, de controle do corpo da mulher.
Quem cria esse contexto somos todos nós, os homens. Somos todos cúmplices.
Quando mulheres reclamam de cantadas de rua, essa violenta e invasiva objetificação pública de seus corpos, os homens respondem com variações de:
“Olha, essa coisa aí que você sente na pele e que diz que te incomoda e te apavora, eu, que nunca senti isso na pele, estou dizendo que é pura frescura sua, que isso não tem nada de mais!”
Machismo é isso: achar que você, homem, é quem vai determinar o que assusta ou não as mulheres. Que você sabe, mais do que elas mesmas, a verdadeira gravidade dos problemas que as afligem.
Se você nunca fez diálise e tem os rins perfeitos, não critique a pessoa que reclama de ter que filtrar o sangue todo dia.
Tenha empatia pela dor do outro — especialmente se for uma dor que você nunca experimentou e, teoricamente, nunca experimentará.

Imagine que você tem um grupo de pessoas e quer descobrir quantas são alérgicas a uma substância.
Pois bem, você pinga uma gotinha na mão de cada uma. Quem reagir à substância, ficar com coceira ou inchaço, é porque é alérgica. Por definição. Ser alérgico é isso: reagir a essa substância.
Pensem no feminismo como essa substância.
Se você é exposto ao feminismo e fica com inchaço ou coceira na mão, se sente incomodado e patrulhado, precisa mudar seu modo de agir e de falar, então é porque seus modos de falar e de agir eram machistas. Machismo é isso. Não tem outra definição.
Se você acha que não, está em denegação. Mas a coceira na sua pele não te deixa mentir.


Sim, muitas vezes, infelizmente, as próprias mulheres são cooptadas pelo machismo e se tornam porta-vozes de seus piores preconceitos. A outrofobia é tão forte que coopta até mesmo o objeto de sua fobia.
Entretanto, isso só comprova a gravidade e a urgência do problema: a mulher, quando se deixa infectar pelo machismo e se transforma em vetor da cultura machista, torna-se vítima e algoz, duplamente vítima.
É como se o Aedes aegypti não só transmitisse a dengue, mas também morresse dela.

A pergunta é simples: você está no time dos que receberam mais do que a média e, portanto, pode abrir mão de algumas regalias em prol de quem não teve as mesmas oportunidades? Ou recebeu menos do que média e, portanto, ainda precisa de todas as vantagens que puder agarrar?

Não por acaso, uma das conclusões de uma pesquisa sobre o assunto foi que os países e culturas que mais reforçam o sexismo benevolente também são os que mais praticam o sexismo hostil. Em outras palavras, os mais cavalheiros são os mais machistas:
“O sexismo benevolente “recompensa” mulheres quando elas desempenham papeis tradicionais, enquanto o hostil pune as mulheres que não se comportam de acordo com os padrões ideais machistas.”


Fala-se de racismo, e lá vem:
“Mas tenho amigas negras”, “já namorei uma negra”, “chamo meu amigo de Sombra /Grafite/Tição/etc e ele nunca se importou”.
Só que sua opinião, suas amigas, suas namoradas, tudo isso é irrelevante, entende? O racismo é maior que você, já existia antes, vai continuar existindo depois. Essa discussão tem que se dar no nível da História e da Sociologia, dos indicadores econômicos e das injustiças contemporâneas. Quando muito, talvez, da experiência pessoal das pessoas negras que sofrem a discriminação, mas mesmo isso é altamente subjetivo, pois o preconceito também é introjetado pela própria comunidade. Mas, com certeza, não da sua experiência individual de pessoa branca privilegiada.
O assunto não é você.

Não estou me colocando acima desse comportamento. Bom narcisista outrofóbico que sou, escrevi o texto não pensando nas outras pessoas, mas em mim mesmo e na minha própria vontade (tão vaidosa e tão narcisa) de ser a melhor pessoa possível. Pois eu também faço tudo isso. Escuto alguma coisa e já trago logo para mim, quero saber como afeta a minha vida, tenho sempre uma anedota pessoal para contribuir.
Não estou falando de cima, como o guru que conseguiu praticar um comportamento ilibado, pontificando às infelizes lá embaixo que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação: pelo contrário, estou falando a partir dos subterrâneos, do meio da multidão; estou falando justamente da briga diária que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo todo.

Mas não preciso ser mulher para lutar contra o machismo, nem negro, contra o racismo. Não é necessário sofrer algo na pele para ter empatia por quem sofre. É possível transcendermos nossa outrofobia, nossa criação, nosso passado, nossa classe social, nosso gênero, nossos preconceitos.
Podemos ser maiores que nossas caixinhas.

Esse texto não é só sobre a minha vida: ele é também sobre a sua.

As mulheres são mortas em tão grandes números, e por seus próprios homens, porque existe uma cultura machista no Brasil, onde as mulheres são vistas como tendo menos valor, onde as mulheres são rotuladas ou como santas ou putas, onde uma mulher viver abertamente sua sexualidade é considerado ofensivo ou repreensível, onde a sexualidade de uma mulher tem impacto direto sobre a honra de seu companheiro.
Se você faz piadas que confirmam os lugares-comuns dessa cultura machista, que objetificam a mulher, que estigmatizam seu comportamento sexual, então você possibilita e reforça essa cultura assassina.
Você é cúmplice.

Fazer rir é relativamente fácil. Difícil é fazer rir sem ser babaca.

Nossa sociedade não se organizou sozinha, nem caiu pronta do céu: foi organizada por muitos homens (ênfase em “homens”), ao longo de muitos séculos, e obedece, em larga medida, aos interesses de quem a organizou — interesses muitas vezes conflitantes e contraditórios, pois a sociedade é fruto não de uma “conspiração a portas fechadas”, mas de um longo processo social e político.
No caso do Brasil, nossa sociedade foi engendrada por uma elite machista, classista, hierarquizada, racista, paternalista, hipócrita e autoritária, e continuamos funcionando de acordo com esse paradigma outrofóbico até hoje, mesmo que sob o verniz da democracia e do estado de direito.
Então, se todas as pessoas brasileiras magicamente deixarem de ser outrofóbicas mas as estruturas e instituições permanecerem inalteradas, essa nossa hipotética sociedade sem machistas e sem racistas continuará intrinsecamente machista e racista, e marcada pela mais profunda outrofobia, pela mais crônica desigualdade racial e de gênero.
Acredito nos bons sentimentos de todo mundo, mas não deixo de achar incrível que, mesmo ninguém sendo machista ou racista nessa nossa sociedade tão linda, o resultado final é que as pessoas brasileiras do sexo feminino ou de pele mais escura (e gays e trans* e etc e etc) sempre acabam se dando pior. A Outrofobia sempre vence.
O baralho que herdamos já está viciado para beneficiar sempre um tipo específico de jogador. Não basta que os jogadores beneficiados simplesmente não trapaceem — pois, mesmo assim, vão continuar magicamente ganhando todas as partidas.
É necessário trocar de baralho.
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