Felipe - @livrografando 29/03/2020
O melhor livro da década
Desde 2017, quando li A Mansão do Rio, obra pouco conhecida do Pat Conroy (o mesmo autor de O Príncipe das Marés), não lia um romance tão denso e com uma história tão profunda, aliada a um excelente texto. Nós, os Afogados, nesse sentido, ocupa um lugar de destaque, simplesmente por se constituir no melhor livro que já li até agora, e essa afirmativa é sustentada por inúmeros argumentos, desde a escrita até mesmo à edição da Tordesilhas, que dá um aspecto simbiótico à obra. De quebra, uma história inesquecível, bem construída, com personagens bem concebidos e baseada numa sólida e extensa pesquisa nos arquivos que Carsten Jensen realizou durante vários anos.
Nós, os Afogados é um romance dinamarquês publicado em 2006 e é baseada na própria história da cidade de Marstal, num espaço de 97 anos, entre 1848 e 1945, tendo como mote central os marinheiros, dentre os quais se destacam três: Laurids Madsen, Albert Madsen e Knud Erik. Iniciando com uma sangrenta batalha no mar, o romance já mostra que a violência terá um papel de destaque, uma vez que a trama irá abordar as duas guerras mundiais. Nessa batalha, Laurids Madsen desaparece sem deixar vestígios, mas Albert acredita que o pai não está morto, mas apenas sumido, então resolve também se tornar marinheiro para poder encontrar seu genitor.
No afã de querer ingressar na marinha dinamarquesa, Albert passa por uma provação: o senhor Isager, conhecido por ser altamente agressivo e autoritário com seus alunos, agredindo-os fisicamente. A escola da marinha era vista como um ritual de iniciação na vida do homem dinamarquês, provando sua masculinidade, baseada na resistência à dor e na rigidez. No entanto, os alunos começam a alimentar um ódio mortal por Isager, cansados da humilhação a qual eram submetidos, e começam a planejar uma vingança que acaba por matar seu animal de estimação, o Karo, além de tentar matá-lo em um incêndio.
Anos mais tarde, Albert já é um marinheiro experiente e numa das suas viagens, consegue encontrar seu pai (não é um spoiler, pois não compõe um dos momentos decisivos da trama), no entanto com outra família e renegando seu primogênito, e é exatamente nesse momento que Albert percebe as consequências da vida de marinheiro e mudanças nas relações familiares. Com o tempo, Albert se torna um grande proprietário de navios, no qual erige uma estátua e um quebra-mar, celebrando o momento de apogeu da pequena cidade de Marstal. Mas esse momento de êxtase e euforia dura pouco, pois a Primeira Guerra Mundial grassa e afunda a cidade em um mar de lágrimas, chorando os mortos do conflito bélico. Sem dúvida, é a partir deste momento que Carsten Jensen mostra sua sensibilidade na escrita, através da atitude de empatia que os personagens têm (afinal, por si só, o título do livro já inspira uma sensação de empatia).
Nessa miríade de emoções que a Grande Guerra proporcionou não só a cidade de Marstal, mas ao mundo inteiro, Albert conhece Klara Friis, viúva de Herman Henning Friis, que morreu em combate no mar, e mãe de Knud Erik, que mais tarde se tornará um dos grandes marinheiros de Marstal, mesmo contra a vontade de sua mãe, temerosa de o que aconteceu com seu esposo se repita com seu filho. Albert começa a se apaixonar por Klara, mas vê em Knud Erik um obstáculo, já que tal relacionamento poderia esfriar entre os dois, o que acaba acontecendo posteriormente. O que Klara não sabia é que Albert levava seu filho para o cais, fato que Herman Frandsen, uma espécie de antagonista do romance, acaba participando a mulher, fazendo com que ela expulse o marinheiro idoso da casa e ele saia sem rumo pelo mar, até provocar sua morte.
Com a morte de Albert, mais uma virada na história: sem saber, Klara se torna herdeira do patrimônio do empresário, e sem saber como lidar com tantos bens, vai à Copenhagen e conhece Isaksen, com quem não terá uma relação amistosa até desembocar no rompimento entre os dois. Nesse ínterim, Knud Erik está disposto a se tornar marinheiro, mesmo sem o consentimento de sua genitora, mas não possui audácia para tanto, até que seus amigos o influenciam para que o menino apresente mal comportamento na escola, fato que começa a se concretizar. Esses seus amigos, além de companheiros de gangue, se tornarão seus colegas de profissão anos mais tarde. Na reta final do livro, Knud Erik conhece Sophie, uma garota que irá balançar as estruturas do jovem marinheiro, fazendo com que ele comece a entrar em conflito interno a respeito do que realmente quer para a vida. Na vida de marinheiro, Knud Erik irá conhecer não só os prazeres e as alegrias da liberdade, como as suas prisões e suas lacunas, o que começa a ocorrer no momento em que o personagem está no mar combatendo na Segunda Guerra Mundial, lutando pela vida e pela sobrevivência não apenas sua, mas dos companheiros de tripulação.
O que torna Nós, os Afogados tão incrível a ponto de se sagrar o melhor livro que já li na década (2011 a 2020, pois é um historiador falando)? Em primeiro lugar, a escrita de Jensen: desde a primeira página, o autor te convida a conhecer a história de uma forma tão simples, mas ao mesmo tempo com um texto irretocável, e que incrivelmente consegue manter ao longo de quase 700 páginas, o que é uma proeza e tanto. O texto da narrativa é dividido em sequências, ocorrendo com que a história transcorra com dinamismo e fluidez, além das palavras sofisticadas e da construção dos parágrafos que beiram o lírico, o poético, por vezes, o que dá um charme a mais no romance. Por meio de um texto sensível, Jensen convida o leitor, por vezes, a refletir sobre os temas abordados no romance.
Em segundo lugar, a própria edição da Tordesilhas, que, para além de uma linda capa com um tom de azul atraente, também a diagramação dos parágrafos traz um aspecto de harmonia, o que permite ao leitor uma experiência agradável com o livro. O que dizer então das divisões do livro com aquele desenho de âncora na parte superior central da página? Simplesmente maravilhoso.
O terceiro ponto que destaco são os personagens, todos muito carismáticos, tanto os principais como os secundários e aqueles que apenas realizam uma passagem pela trama, pois cada um possui sua contribuição para o desenvolver da trama. Acredito que a intenção do autor seja mostrar que a vida de todas as pessoas daquela localidade girava em torno do mar, tanto no que diz respeito aos negócios, ao modo de viver, quanto ao temor da instabilidade da vida e da morte, constantes no romance.
A quarta coisa a destacar são as reflexões que o autor traz ao longo da narrativa. Aliado ao texto de elevado nível, Jensen tece problemáticas que convidam o leitor a pensar sobre as questões da vida, como a humanidade em nosso dia a dia, a valorização das pessoas que estão ao nosso redor, as atitudes que temos em relação ao outro, bem como sobre as consequências dos caminhos que se traçam. Mas ainda há um outro tema que poderia muito bem se encaixar na atualidade: a frágil masculinidade, que reside na demonstração de força, poder e resistência à dor, construindo o arquétipo do homem destemido, corajoso. Knud Erik, por exemplo, é um contraponto a este tipo, pois ao mesmo tempo que reproduz esses estereótipos, é um homem confuso, indeciso, pressionado pela vida e pela sociedade, vivendo de acordo com suas próprias regras, o que se constitui em mais uma genialidade de Carsten Jensen.
Por último, destaco a estrutura narrativa da trama e do seu ritmo, ou seja, como Jensen conduz a trama. A partir do encadeamento do texto denso, mas ao mesmo tempo sensível, com as cenas e os pensamentos de cada personagem, Nós, os Afogados entrega uma simbiose muito rara de acontecer em romances longos. Da primeira a última página o texto é de excelente nível, não destoando em nenhum momento, o que auxilia no desenrolar da trama, sendo mesmo interessante até momentos que não são significativos para o entendimento do romance, devido à fluidez da escrita. Uma história que tem o mar como mote poderia se constituir em uma trama enfadonha, modorrenta, onde nada acontece, mas Jensen prova neste livro que as ações dos personagens é apenas a cereja do bolo.
Por essas razões, considero Nós, os Afogados como o livro mais bem escrito até hoje e que relerei com certeza. Uma história bem elaborada, com personagens bem construídos, e, de quebra, com um texto de alta qualidade e recheado de contextos históricos, Nós, os Afogados entrega uma experiência fantástica para o leitor, onde ele irá conhecer não apenas um pouco da história da Dinamarca (muito interessante, por sinal), uma vez que o autor pesquisou em arquivos para conceber a trama, como também é um ensinamento sobre a vida, sobre a empatia com o outro, sobre o senso de humanidade das pessoas, tão necessária e urgente nesses tempos de individualismo e de egocentrismo exacerbados, como o autor mesmo fala no final do livro: “os afogados somos nós”. Recomendo mil vezes a obra dessa leitura! Quem ainda não leu e quer uma ótima opção de trama que saia do óbvio, essa é a indicada.