Euflauzino 13/02/2019O demônio que nos habita
Mais uma vez mergulho de cabeça no universo marginal que Dennis Lehane conhece tão bem. O submundo é um mundo paralelo ao nosso, parece não existir, coabita sem que tenhamos acesso. Mas é aí que o autor mostra a excelência de suas palavras, de seus diálogos cortantes, malandros e perfeitos.
Em A entrega (Companhia das Letras, 182 páginas) Lehane nos brinda com personagens verossímeis que carregam seus fantasmas como se arrastassem pesadas correntes atrás de si. Como se isso não bastasse há mistérios a serem resolvidos que torna a leitura muito saborosa.
Bob é um cara bom, ponto. Compassivo, tímido e solitário. Isso fica bem claro nas primeiras linhas deste livro. Frequentador da igreja, vai à missa religiosamente, à mesma paróquia que seu pai frequentou, mas nunca comunga. Como alguém tão religioso não haveria de comungar? Isso é que também se pergunta o detetive de polícia Torres.
“Você tem tanto amor em seu coração”, disse padre Regan a Bob quando ele desandou a chorar durante a confissão... Como falar a um homem de Deus sobre o mundo de um homem? Bob sabia que o padre tinha boas intenções, sabia que, em teoria, ele estava certo. Mas a experiência mostrara a Bob que mulheres viam o amor em seu coração, certo, mas simplesmente preferiam um coração com um estojo mais atraente à sua volta...
Bob é um cara simples, comum, praticamente invisível como um bom bartender deve ser. Trabalha em um bar pra lá de suspeito seguindo ao pé da letra o lema: “mantenha a porra da boca fechada”, isso conserva os dentes e a vida. É um bar de fachada, que já teve seus dias de sucesso, mas que agora não passa de mais um lugar para lavar dinheiro sujo para a máfia chechena.
Certa manhã sua atenção é despertada por um barulho diferente e ele sai em busca do tal som. Depara-se com um cão jogado dentro da lata de lixo e sua vida a partir de então começa a tomar um rumo inusitado, pois neste mesmo dia conhece Nadia e unidos passam a tomar conta do cãozinho.
“Bob teve que remover algumas coisas para chegar a ele – um micro-ondas sem porta e cinco grossas Páginas Amarelas, a última de 2005, empilhadas em cima de roupas de cama manchadas e travesseiros mofados. O cão – ou muito pequeno ou então um filhote – estava no fundo, e enfiou a cabeça no torso quando a luz o atingiu. Ele emitiu um leve som de lamento e contraiu o corpo ainda mais, os olhos tão fechados que davam a impressão de linhas. Uma coisa esquelética. Bob via suas costelas. Viu também uma grande crosta de sangue seco próximo ao ouvido (...)”
Tudo parece caminhar perfeitamente bem, com Bob e Nadia cada vez mais ligados, mesmo com a implicância de seu primo Marv que não entende seu apego ao cão. Mas o destino traz de volta Eric Deeds, ex-namorado de Nadia, sujeito estranho que se diz dono do cão e o quer de volta. A frase do encontro entre Deeds e o cão é de encher os olhos: “Alguma coisa na estrutura do mundo acabava de ser danificada”. Recém saído da prisão com pitadas de psicopatia de alguém que sofreu horrores enclausurado, carrega a suspeição de um assassinato que não se preocupa em negar. Mas Bob não irá entregar o cão assim tão facilmente.
“Quando alguém toma alguma coisa de você, e você permite, não fica grato, simplesmente acha que você lhe deve algo mais.” Ele umedeceu o pano no balde, torceu-o um pouco e jogou-o sobre a poça de sangue maior. “Não faz sentido, certo? Mas é assim que eles sentem. Cheios dos direitos. E depois disso você nunca mais vai conseguir fazê-los mudar de ideia.”
Como o que é ruim pode piorar ainda mais, é o que acontece. Certa noite há um assalto no bar e o dinheiro que deveria ser entregue aos chechenos é roubado (um dinheiro que não pertence ao bar, mas à máfia, que fique bem claro). Agora Bob entra em rota de colisão com Deeds, seu primo Marv e a máfia, sem contar que seu coração começa a bater descompassado por Nadia.
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