GioMAS 27/06/2023
Instinto e socialização sob uma perspectiva repugnante
O livro contém várias camadas e, assim como em "O Jantar", o autor disseca o inconsciente humano, esmiuçando o que há de mais repugnante nas relações sociais, sob o enfoque de um narrador personagem controverso, babaca, egocêntrico, capaz de ocultar os seus desvios de personalidade sob o manto da ciência, da análise da biologia humana, de instintos - segundo ele - incontroláveis, imutáveis.
Em verdade, com o avançar da estória, percebe-se que todos os personagens sucumbem aos impulsos mais baixos, fazendo-nos questionar até ondem somos capazes de preservar valores morais em detrimento de prazeres egoístas.
O autor indiretamente nos questiona sobre as motivações por trás de comportamentos banalizados.
Seríamos nós, enquanto humanos, realmente racionais?
Alterações hormonais e instinto de sobrevivência moldam a forma como interagimos e nos relacionamos, justificando reações lascívias e mesquinhas?
Aparentemente, para Marc, narrador personagem, sim!
Essa é a beleza da obra, percorrer eventos comezinhos e outros um tanto quanto chocantes e violentos, pela ótica de um homem desprezível.
Marc relata os eventos que o motivaram cometer um ato socialmente reprovável, criminoso, mas plenemamente compatível com sua natureza e convicções.
O narrador, médico de classe média alta, cujos pacientes pertencem a nata de Amsterdam, em sua maioria artistas consagrados, não é o que se pode chamar de pessoa íntegra.
Não por acaso, motivado por forte ímpeto adúltero, induz a família a passar as férias na casa de praia com piscina de um dos seus típicos pacientes. O seu objetivo, por mais banal que possa parecer, é se envolver com a esposa do anfitrião.
A partir daí é só ladeira a baixa.
Dissimulação e hipocrisia são os carros chefes do enredo - o que não é ruim para o leitor, ao contrário, é satisfatório!
Os homens, sem exceção, são agressivos e oportunistas, guiados por deplorável e desmedido impulso sexual.
As mulheres se prestam a papéis inferiorizados, apáticos, aceitando investidas baratas e se beneficiando disso, por mero prazer, ego ou posição social.
Tamanha sordidez resulta em uma série de fatos desastrosos, irreversíveis - e, agora, aviso de antemão que haverá spoiler.
Pois bem, a filha de Marc é estuprada. O ápice do livre.
Todos os homens, em algum momento, revelaram-se capazes do ato de violência. Todos poderiam ser culpados. Todos, exceto o anfitrião, não por seu caráter, mas pelas circunstâncias do crime e pelas limitações físicas a ele impostas no momento em que tudo se desenvolveu.
Embora a vítima seja a vulnerável menina de quatorze anos, poderia ser qualquer uma das outras mulheres, já que todas foram submetidas a algum tipo de constrangimento.
Marc utiliza o acontecido como um subterfúgio. Assim, elege um dos homens, obviamente o seu anfitrião - marido da mulher que Marc desejava puramente por luxúria, ator, alvo da atenção feminina-, e se valendo da posição como médico o mata.
Marc tem plena convicção que o seu alvo não foi o responsável pelo estupro. Seria fisicamente impossível. Ainda assim, opta por ignorar a constatação óbvia.
Inclusive, depois de muita angústia e mistério, o culpado é revelado, o homem que fazia reparos na casa de praia. O sujeito baixo, com tatuagem no braço, que maliciosamente se aproximou de sua filha.
Isso não é suficiente para dissuasir Marc que, contraditoriamente, justifica o seu comportamento como um ato de justiça, afinal de contas, o seu alvo é um predador em potencial.
O mais irônico é que o próprio Marc, com toda sua perfídia, é um abusador de mão cheia.
O livro é um mergulho na hipocrisia humana. Uma obra que vale pelo talento narrativo do autor, pela sensação de desconcerto e ojeriza que desperta.