Leila de Carvalho e Gonçalves 07/05/2021
A Ressignificação Do Cotidiano
Livro das Semelhanças é o terceiro da mineira Ana Martins Marques, um nome que vem conquistando proeminência no circuito literário contemporâneo.
Resumidamente, trata-se de um seleção de poemas voltada para a ressignificação do cotidiano mediante o redimensionamento da linguagem cujos versos, livres da métrica e de rimas, apresentam uma sonoridade impactante, em especial, por conta do hábil manejo das palavras.
O livro é em quatro partes e a primeira é um exercício de Metaliteratura, isto é, um convite para o leitor direcionar o olhar sobre como se estrutura um livro, começando pela ?Capa?, seguindo pela ?Dedicatória?, até chegar ao ?Colofão? e a ?Contra-Capa?. Nela, a autora revela segredos, ?Não Sei Fazer Poemas Sobre Gatos?, discute acerca da autoria, ?Boa Ideia Para Um Poema?, e até comenta sobre os percalços da ?Tradução?.
?Este poema / em outra língua / seria outro poema / / um relógio atrasado / que marca a hora certa / de algum outro lugar / / uma criança que inventa / uma língua só para falar / com outra criança / / uma casa de montanha / reconstruída sobre a praia / corroída pouco a pouco pela presença do mar / o importante é que / num determinado ponto / / os poemas fiquem emparelhados / / como em certos problemas de física de / / velhos livros escolares.?
Já a segunda parte, denominada ?Cartografias?, utiliza mapas para esquadrinhar caminhos com o escopo de resolver a complexa interação entre o amor e a proximidade, capaz de tornar a distância uma ilusão.
?Não sei viajar não tenho disposição / não tenho coragem / / mas posso esquecer uma laranja sobre o México / desenhar um veleiro sobre a Índia / pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma / como se fossem unhas / duplicar a África com um espelho / criar sobre o Atlântico um círculo de água / pousando sobre ele meu copo de cerveja / circunscrever a Islândia com meu anel de noivado / ou ocultar o Sri Lanka depositando sobre ele / uma moeda média / visitar os nomes das cidades / levar o mundo a passeio / por ruas conhecidas / abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse / apenas para que tome / algum sol.?
Quanto a Terceira Parte, ?Visitas Ao Lugar-Comum?, Martins Marques tematiza algumas expressões populares do nosso idioma, dando um novo sentido poético ao que elas possuem de literal. Bons exemplos são dobrar a língua, cortar relações e torar fotografias.
?Tirar fotografias / e depois devolvê-las / àqueles de quem as tiramos / à mulher fora de foco / em seu vestido violeta / à casa de janelas verdes / às paisagens / tomadas emprestadas / à casca / de cada coisa / aos vários ângulos / da Torre Eiffel / ao cachorro morto / na praia.?
Finalmente, a última parte é ?O Livro Das Semelhanças? que se debruça
sobre a identidade, a analogia e até a imitação, ao observar a conformidade entre modelo e cópia. Esta é uma das temáticas do livro, sendo mais explícita, a ideia de autoria e originalidade perpassa sob distintos ângulos os poemas, brincando com palavras cujas sintaxes e fonéticas, se similares, jamais se repetem com o mesmo sentido.
?Estou no dia de hoje como num cavalo / você está nas suas roupas como num navio / estamos na cidade como num teatro numa floresta na água / a tarde de terça é uma feira de bairro / nos encontramos quase por descuido / à mesa do café com sua toalha xadrez / de frente para o cinema contínuo do mar / no vagão deste mês setembro sereia sinuosa / era quente o dia era o equívoco das estações / era a música pequena da memória / estou no dia de hoje como num casaco largo demais / estou no país desta tarde estudei / na escola do enfado / você dobra a tarde como as mangas / da sua camisa branca / você desdobra a tarde como um guardanapo /lançado ao colo / você conhece os modos no que se refere às tardes / você sabe usar / os talheres da tarde / estou desconfortável no meu nome estou / na antessala do amor estou na estação / da espera queria distrair a morte / você conhece muitas coisas você sabe falar / sobre as coisas como esses bichos que conhecem / desde sempre as rotas ancestrais / como os pássaros que trazem impressos no corpo / os mapas migratórios você conhece a língua do amor / que eu soletro tão mal.?
Enfim, adquiri o e-book e recomendo. Sem medo de errar, esse é um livro que não pode faltar na biblioteca de quem curte poesia.
Biografia: Ana Martins Marques nasceu em 1977, em Belo Horizonte, onde mora. Graduada em Letras, tem doutorado em literatura comparada pela UFMG. É autora de Vida Submarina (Scriptum, 2009) e Das Arte Das Armadilhas (Companhia das Letras, 2011) que recebeu o Prêmio Biblioteca Nacional (2012).