Purgatorial

Purgatorial Fernando Ribeiro




Resenhas - Purgatorial


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Ana Rodrigues 21/09/2015

Dias no purgatório

Eu traduzi Isaac Asimov.
Eu traduzi parte de ‘Tigana’, um dos grandes clássicos contemporâneos da Fantasia. E traduzi a trilogia original de Shannara, que deu o pontapé inicial na onda de fantasia nos moldes tolkenianos em que vivemos até hoje.
Trabalhei editorialmente em ‘Outlander’, um dos maiores best sellers do seu gênero. Também mexi em uma coletânea dos grandes George R. R. Martin e Gardner Dozois.
E antes já tinha editado uma coletânea de Nelson de Oliveira.
Mas nunca na vida tinha editado um livro de poesia. Traduzido poesia. Trabalhado com poesia.
Minha relação com rimas e métricas sempre foi de leitora – tirando, claro, aquela fase que todo adolescente com a sensibilidade mais aflorada passa, de tentar expressar-se assim, colocando sentimentos confusos em estrofes e versos. Para o bem da humanidade em geral e da literatura em particular, foi fase, passou e não deixou maiores danos. Só alguns documentos no Word que eu tenho dó de apagar.
Só li.
Os clássicos brasileiros, portugueses (yep, li Pessoa e Camões. Mas li Espanca, Sá-Carneiro, Bocage e por aí vai), os ingleses, os franceses e até os alemães (Ich sprache um pouco de Deutsch, dá pra arranhar um Goethe da vida numa tradução bilíngue).
Aí, numa nessas guinadas que a vida dá, surgiu a oportunidade de trabalhar em um livro de poesia. Portuguesa. Contemporânea.
Do vocalista de uma das minhas bandas preferidas.
É. Eu travei um pouco na hora de cair a ficha. Eu acompanho o trabalho da banda desde 2001, mais ou menos. E sou completamente apaixonada pelas letras do Fernando Ribeiro. É uma questão de identificação e de inspiração – as músicas do Moonspell inspiraram alguns dos contos que mais me são caros, como “Queda e Paz” e “Como nos tornamos fogo“.
Foi difícil conseguir segurar a emoção da fã na hora de ser profissional, mas acho que consegui. Até porque o material que eu recebi é simplesmente maravilhoso.
A edição portuguesa é o conjunto de três livros anteriores do Fernando (Como escavar um abismo, As feridas essenciais, Dialogo de vultos) com poesias inéditas. Quando negociamos uma edição nacional, logo surgiu a ideia: e se colocássemos material diversificado junto?
Ele adorou a ideia. E assim, a edição brasileira tem mais conteúdo que a original, incluindo pequenos poemas sobre as cidades pelas quais ele passou na última turnê, contos, um ensaio sobre Crowley e pessoa, um extrato de um romance ainda inédito – e o que vai fazer os fãs do Moonspell surtarem: um diário da passagem da turnê Road to Extinction, em que o Fernando destila toda a sua sinceridade, com a qual tomamos contatos em seus posts no blog.
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O livro recebeu um trabalho gráfico lindo do Estevão Ribeiro (Editor da Aquário e meu marido, pra quem não sabe), que usou como base a capa original portuguesa da Saída de Emergência. Ele realmente caprichou nessa edição, cheia de detalhes que combinam com a essência de um livro tão diverso.
E agora, falo como leitora. Eu sou fã, mas sou crítica. Vocês sabem disso.
Se o livro não tivesse me tocado imensamente, eu não estaria aqui falando dele. Faria meu trabalho e só. Mas as poesias do Fernando Ribeiro tiveram em mim o mesmo impacto que as letras das músicas do Moonspell. Eu li o arquivo com elas de uma vez só, sem pensar em editar, revisar. O primeiro contato foi o de leitora – eu queria ter tido um olhar mais distante, mas foi impossível. Fui simplesmente arrastada.
Não entendo poesia. Sei do que eu gosto. Gosto de Pessoa, Augusto dos Anjos, Tennyson, Keats, algum Baudelaire e nem todo o Bilac.
E do Fernando Ribeiro – que tem óbvias influências de Pessoas, mas que me fez lembrar muito de Augusto dos Anjos, da sua ânsia de minúcias biológicas e escatológicas. Não sei explicar se existe diferença entre ser um compositor e ser um poeta, já que não sou nenhum dos dois. Mas há compositores que nunca me tocaram enquanto poetas. Aqui, o caso foi completamente diferente. Mesmo quando voltei ao livro para editá-lo e revisá-lo (mantendo, na parte em verso, a grafia portuguesa sem o Acordo, como as poesias foram originalmente apresentadas), por vezes parei e selecionei trechos:
Assiste ao corpo o direito de renunciar ao mundo.
Assiste aos olhos o direito de reclamar legítima
defesa contra as cores.
Mas o estúpido sorriso
E o estúpido caminho
Não me ajudam a
Deixar de estar sozinho.
Uso a táctica do pedestal
Pela última vez
E já ninguém cá chega
Mas também ninguém fica.
(A táctica do pedestal)
Apetece-me o labirinto,
A morte,
A descida.
(Poema d’ amoníaco)
Rastos e restos,
Rasos e fundos.
Armadilhados de sede
no peito desfeito.
Em defesa, acrobacia do nada.
Guerra aberta, dimensionada no tudo.
(Rastos e restos)
Nada espero.
Tudo quero.
Se me dessem o mundo
enfiava-o na mala.
(Mala)
Colher-te das árvores
beber-te das poças
da pele de quem passava
distraído
pela ausência
de quem fomos.
(Bomba de pregos)
Isso é uma amostra. Meu arquivo com quotes desse livro tem quase 25 páginas no Word, só da parte de poesia.
O extrato de romance, ‘O Bairro das Pessoas’, tem uma prosa frenética, desenfreada, enquanto os contos são mais lovecraftianos e lentos em sua composição, com um cuidado especial na construção da atmosfera. Há dois textos de não-ficção: um relato sobre a morte do vocalista do Batóry e um pequeno ensaio sobre Pessoa e Crowley. Os dois, além de informativos, são uma pequena janela para o mosaico de influências que formam a poesia e as composições do autor.
A edição finaliza com um verdadeiro presente aos fãs do Moonspell: o diário de turnê tem uma sinceridade rasgada, contando as dores de uma turnê, as dificuldades de se manter fiel ao sonho mesmo quando o mainstream musical já não encara o rock pesado (ou melhor dizendo, o rock em geral) tão bem. Sim, o Moonspell é conhecido no meio, tem fãs, mas isso não significa que tudo sejam flores, que os lugares sejam ótimos, que a divulgação ajude – ou que a vida pare de acontecer. E Fernando não esconde nada: o contato nem sempre fácil com os fãs, as más notícias que quebram a rotina, a hipocrisia musical portuguesa… está tudo ali, de forma nua e crua, despudorada, raivosa, amarga, mas gentil e doce por vezes.

site: https://talkativebookworm.wordpress.com/2015/09/22/o-que-estou-fazendo-purgatorial-de-fernando-ribeiro/
Deborah Brock 26/09/2015minha estante
Que experiência incrível! Parabéns! Dá vontade de ler só pela sua resenha.


Ana Rodrigues 30/09/2015minha estante
Foi uma experiência maravilhosa, complementada por tê-lo conhecido pessoalmente nos lançamentos e ver que ele é, além de tudo, uma pessoa incrível.


Manoel 10/01/2016minha estante
Adorei a sua resenha. Devo ter encontrado vc no 9º FIQ, comprei o livro lá. Tô adorando o diário de turnê. Onde que eu posso ler o conto "Como nos tornamos fogo"?




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