Luísa Coquemala 25/05/2017
Aprendendo a morrer com Lucrécio
Em Hannah e suas irmãs, o personagem interpretado por Woddy Allen, declaradamente ateu, entra em conflito: o fim está próximo e é inevitável, vamos morrer e aí tudo se acaba para sempre.
Mickey Sacks, comicamente, passa a procurar diversas maneiras de se convencer do contrário. Primeiramente, tenta acreditar em qualquer religião, mas falha miseravelmente. Então, lendo poetas e pensadores, vê seu conflito interno apenas mais aprofundado.
Mickey, depois de quase se matar, acaba superando a grande questão. Como isso acontece, infelizmente, eu não posso contar a vocês - afinal, acabaria estragando o final do que, para mim, é o melhor filme de Woody Allen. (Mas, enfim, aproveitem e vejam o filme)
Se eu pudesse falar com Mickey, o aconselharia a ler Lucrécio- um poeta revelador que viveu no primeiro século antes de Cristo. Lucrécio não é o que chamamos propriamente de ateu: afinal, em De Rerum Natura, seu grande poema, ele nega a providência divina, a vida após a morte e os ritos religiosos, mas não nega os deuses em si (mesmo que, ironicamente, eles acabem não servindo para nada).
Inspirado sobretudo em Epicuro, o verdadeiro deus de Lucrécio era a natureza. Aí está o grande ensinamento do poeta, o que eu acho que Mickey gostaria de ter sabido. Primeiramente: se não há vida após a morte, a morte não é nada e, logo, não há razão para temê-la. E essa não é uma ideia totalmente negativa justamente porque nos leva a encarar a vida de uma outra maneira.
Para Lucrécio, temos que aproveitar a chance de passar pela vida e agarrá-la com o que podemos. Contudo, não devemos fazê-lo de modo desesperado, mas sim aproveitando a vida em cada um de seus detalhes. Um crepúsculo, o cheiro da chuva, um bom livro. Tentar tirar o melhor, o mais proveitoso das nossas obrigações diárias - e, claro, realizá-las com o melhor de nós. Aprender com amor e gratidão sobre o mundo em que vivemos. Sem maldade, sem ódio, sem grandes ostentações, apenas olhos atentos para enxergar o melhor - o que, obviamente, não nega a existência de males.
A meu ver, muitos cristãos têm muito a aprender com Lucrécio (mesmo que nem todos o aceitem). Afinal, nem tudo o que nega nossa crença é necessariamente ruim ou mau. Há outras visões, outras perspectivas. A sabedoria contemplativa de Lucrécio (que me lembra muito a de Jesus) ensina isso. Aceitação é o verdadeiro amor ao próximo: ele não está em rituais ou superstições, está em nós, na maneira como guiamos nossa trajetória e colhemos nossos frutos.
Então, depois de uma vida leve e em busca do conhecimento, poderíamos partir com um suspiro aliviado, felizes pela experiência, gratos e conectados com a vida. A seguir, nosso corpo se decompõe e podemos continuar fazendo parte do funcionamento do mundo que tanto já nos deu. E, como diria Montaigne, quem sabe, depois de milhares de anos, o que foi parte de nós não constitua outras vidas, outras consciências, num ciclo que se repete indefinidamente?
Talvez aceitar o fim da vida faça dela algo mais verdadeiro. Não há necessidade de lutar contra a idade, de ter pressa. Basta apreciar a vida, buscar o conhecimento que te torna uma pessoa melhor e contribuir, mesmo que pouco, com o mundo.
É isso que eu gostaria de ter falado para Mickey (mesmo que ele acabe chegando, de outras maneiras, mais ou menos à mesma conclusão): não devemos nos desesperar porque pode ser uma só vida, mas entender que essa única vale a pena nas coisas mais simples e sinceras. A grande dádiva da experiência é justamente ser parte dela.
Muitos anos depois, é o que a sabedoria milenar de Lucrécio nos ensina e, depois de passar por ela, sinto que posso começar a respirar com leveza.