Sérgio Filho 15/03/2016
The Walking Dead Brasil
Em Cidade de Deus Z, diferente do que talvez se possa esperar de um livro que leva o nome da famosa comunidade em seu título, o escritor Julio Pecly, nascido e vivido na Cidade de Deus, não enfatiza o já famigerado tráfico da sua favela natal, nem a violência gerada pela disputa das bocas através das guerras entre facções ou mesmo do combate com a polícia. Nesse pequeno grande romance Pecly traz um elemento muito em voga hoje em dia: a presença dos mortos-vivos, dos zumbis que vagam aéreos em busca de carne humana.
Só que nessa estória, da mesma forma que o autor foge ao óbvio quanto àquilo que se espera de uma narrativa na Cidade de Deus, os zumbis do enredo criado por Pecly não andam a ermo atrás de cérebro, nem muito menos transformam as outras pessoas em zumbis com uma mordida. Os morto-vivos favelados de Pecly procuram alucinadamente por crack depois de já terem consumido pedras da droga contaminadas e importadas da Colômbia que chegaram à Cidade de Deus por intermédio da corrupção policial.
A partir daí, o narrador nos conduz aos acontecimentos de dentro e fora da Cidade de Deus, cercada por policiais do BOPE que a mando de um Secretário de Segurança preocupado única e exclusivamente com sua imagem e futura candidatura a deputado, impedem as pessoas de entrarem e saírem do inferno em que se transformou a comunidade. Quem está fora quer ansiosamente chegar em casa para descansar de um dia cansativo de trabalho, quem está dentro quer desesperadamente sair para respirar um ar menos angustiante que de última hora infestou a imensa favela.
Do lado de fora presenciamos a mídia tentando descobrir o que acontece na Cidade de Deus, um ativista dos Direitos Humanos, além dos polícias do BOPE e do Secretário de Segurança, traçando suas estratégias nem um pouco politicamente corretas para contornar a situação. De dentro, traficantes, vapores, um jovem casal e até um ninja à procura de vingança, todos tentando a todo custo fugir do lugar, lutando ora contra os zumbis, ora contra a polícia para, sobrevivendo, poderem ir para longe dali e seguir uma nova vida livre do tráfico e das drogas.
Em suma, o livro de Pecly deve ser entendido como a narrativa de uma história de terror real, alegoria vivida por quem sabe milhares de pessoas em todo o Brasil que, vítimas do tráfico, ficam presas às drogas mais pesadas e devastadoras, tirando-lhes o que têm de essencialmente humano, a vontade de viver plenamente. O romance é também sobre a incapacidade do Estado, da sociedade, de enxergarmos o outro como parte de nós; o descaso dos governantes para com os mais vulneráveis, exatamente àqueles sobre quem deveria haver maior responsabilidade e, também, mesmo numa história com a presença de zumbis (ou exatamente por isso) essa pequena grande obra é para - como as personagens da favela em determinada cena da narração - refletirmos sobre a vida que temos e sobre a que queremos.