As dez vidas do senhor Cardano

As dez vidas do senhor Cardano José Carlos Mello




Resenhas - As dez vidas do senhor Cardano


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Andreia Santana 03/11/2015

Uma pequena ode aos imperdoáveis
A história de Pedro Cardano pode ser a de muitas outras crianças que crescem rodeadas de incompreensão e desamor, tornando-se adultos que fabricam máscaras para si mesmos, como escudos que lhes permitem sobreviver à selva social e códigos opressores.

Guardadas as proporções de país, língua e estilo de cada autor, a história da decadência humana retratada no livro por meio da vida de Pedro Cardano lembra a daqueles personagens derrotados e desajustados da literatura beatnik. O próprio protagonista tem muito da inadequação dos bêbados errantes que povoam as obras beat.

O livro cobre do nascimento até a morte do personagem principal. Mas embora tenha um protagonista definido, As dez vidas do senhor Cardano trata de fato é da hipocrisia, dos laços fingidos e convenções que amarram vidas e definem destinos. Pedro Cardano é filho ilegítimo de uma adolescente que "deu o mau passo" e por isso é desprezada pela família. Sem registro de nascimento e com um nome escolhido de improviso, a vida do menino é uma fraude desde a sua origem, ficando claro para o leitor porque ao longo da vida adulta, o personagem reescreveu a própria biografia, perdendo-se no labirinto das mentiras que inventou para si mesmo. O leitor, no entanto, não consegue desprezar o dissimulado Pedro, antes torna-se cúmplice das desventuras desse homem que precisa esconder da sociedade a sua verdadeira natureza.

Pedro é tratado primeiro como um inconveniente, devido ao nascimento fora dos padrões sociais aceitos, e depois como uma aberração por conta da homossexualidade, que precisa ser sufocada desde a tenra infância, tão logo aparecem os primeiros indícios de que aquele menino fugiria à norma. Mandado para um colégio interno e confinado ao armário dos preconceitos familiares, com o passar do tempo, entende que o desprezo para pessoas como ele não está só entre os próprios parentes, mas vem dos vizinhos, da religião, dos professores, dos futuros empregadores, das altas rodas que almeja frequentar. Para não passar pelos dissabores do preconceito escancarado, mas sentindo cada efeito nefasto e corrosivo da sua forma velada, ele passa a viver vidas paralelas que se equilibram mal entre sua verdadeira essência e a existência imaculada que se encaixa nas convenções.

Em paralelo aos conflitos do protagonista, o leitor também é apresentado aos bastidores do mundo da política e seus lobistas, à corrupção escolar, às manipulações de currículos acadêmicos e a toda sorte de sujeira que convenientemente esconde-se sob o tapete social. O recorte histórico dado pelo autor cobre um bom trecho da trajetória recente do país, incluindo aí o Golpe Militar de 64 e as alianças feitas e desfeitas nos bastidores da ditadura, a depender da conveniência de quem estava no poder.

Ambientado entre Porto Alegre, Rio e Brasília, o romance desnuda ainda a alma hipócrita do brasileiro classe média, representado pelo tio de Pedro Cardano, que mantém a custo de muita dissimulação, uma reputação de excelente funcionário, cidadão honesto, bom marido, pai zeloso e cristão devoto.

Outros personagens tão dúbios quanto esse tio desfilam pelas pouco mais de 250 páginas do romance, que não faz concessões ao politicamente correto e tampouco é leitura para quem busca finais redentores. Antes, trata-se de uma homenagem aos párias, uma ode aos imperdoáveis, um canto triste para os desafortunados, o réquiem de um personagem exuberante e que se perde de si mesmo, torturado e engolido pelo preconceito.

*Resenha também publicada no meu blog pessoal: Mar de Histórias

site: mardehistorias.wordpress.com/2015/11/02/resenha-as-dez-vidas-do-senhor-cardano
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