Léo 24/06/2017
Marcante, envolvente, desfecho arrebatador
Certamente muitos já se perguntaram a diferença que fizeram diante de alguma situação ou mesmo na vida de alguém após um certo período de convivência, a curto ou longo prazo. Na literatura essa tese também é apresentada vez ou outra em algumas obras e interligada aos vários assuntos que seus autores inserem em seus enredos, ocasionando tantas reflexões aos leitores mais apegados ao tema, que no geral, quando adaptado ao universo verídico, tendem a passar muitos ensinamentos.
O contexto apresentado por Gutti Mendonça em A Diferença Que Fiz, livro publicado pela Editora Évora, parceira do Marcas Literárias, é encarado como um aprendizado nos quesitos: afeição, coragem, descobrimento, renascimento, reencontro, vida e despedidas. A apresentação de um protagonista jovem e fora dos conceitos do qual os heróis caminham, dão a marca de realidade para a obra, e o tom dramático e reflexivo elaborados com uma escrita adulta, mas serena e cativante, que permite o leitor se apaixonar por cada novo ponto abordado e cada novo personagem conhecido, dão a possibilidade ao mesmo de se posicionar durante o enredo do romance para que vislumbre os desfechos. Arthur ou Zani, como gosta de ser chamado, é um personagem incrível e muito bem talhado pelo autor, apresentando atributos únicos e inesquecíveis.
Os conflitos entre pai e filho tão marcantes no enredo, ganham uma proporção gigantesca e grave nos momentos iniciais do romance e servem para explicar a condição que se encontra a família, mas tornam-se pequenos diante da situação cujo Gutti Mendonça coloca personagens e leitor a partir de certo momento da obra. As reflexões sobre existência passam a ser o alvo da leitura e inquietam os leitores, fazendo-os sentir seres pequenos e fracos ante a tantas condições realmente graves e preocupantes vivenciadas por aqueles que os cercam. O livro mostra o quanto somos capazes de transformar o mundo para o bem ou para o mal. Essa história emocionante faz com que tenhamos uma visão mais clara das pessoas que devemos dar valor e das mudanças que devemos buscar em nós mesmos. Neste ponto, características agressivas do querido protagonista Zani, como sua rebeldia, prepotência, arrogância e egoísmo — até então encaradas por motivos até aceitáveis e bem interpretados — entram em pauta para uma reflexão mais cuidadosa.
O contraste com a realidade cruel é um choque para o protagonista que se vê em uma esfera que jamais pudesse imaginar o peso. De maneira firme e arrebatadora, Gutti Mendonça estabelece essa forte conexão entre enredo – personagem – leitor, usando inteligentes saídas. A leitura é envolvente e viciante, e a linguagem do autor, macia e objetiva, com diálogos perfeitos que denotam o exterior e o emocional das personagens.
Há um ponto muito bonito existente em A Diferença Que Fiz, que transforma toda a expectativa anterior à leitura: a inocência infantil. Gutti Mendonça sabe explorar com clareza, beleza, simpatia e ternura as características dos pequenos personagens da obra, a exemplo do meigo Luca e da pequena Sara. Um cenário transformador e repleto de brandura implica sobre o olhar do protagonista, modificando toda a sua percepção sobre o mundo e as pessoas. Com muito desvelo, Gutti demonstra toda a sua habilidade no processo de desenvolvimento de enredos. A leitura é gostosa e mesmo atravessando por temas graves e, às vezes, apresentando um vocabulário próprio do mundo adolescente como no trecho: “Seus olhos e seu sorriso foram as primeiras coisas que todos repararam, exceto Arthur que, cinco segundos depois de vê-la, pensou imediatamente: Caralho, que gostosa. Uma pena eu não ficar aqui tempo suficiente para poder comê-la”, onde se vê os traços da frieza em relação a pureza e candura do próximo e as intenções mais ilícitas de Arthur, o leitor se sente num ambiente encantador onde a velha essência juvenil rodeia a obra.
Gutti consegue usar Arthur como um espelho de muitos outros jovens, que descobrem que seus conflitos não são apenas com os pais dentro de casa, com amigos ou namoradas. Muitos enxergam o mundo como um grande inimigo. Na obra, as revoltas de Arthur causam, por vezes, tumulto e medo em frente as crianças. Entretanto, na obra, uma vertente com muitas surpresas dispara o coração do leitor. Situações de abandono são atenuadas pelos fortes vínculos de amizade, e Gutti Mendonça segue apresentando sensatas linhas de raciocínio que culminam em uma experiência maravilhosa de leitura. A inserção do método do trabalho social também é lida em determinado momento em A Diferença Que Fiz. O planejamento e progresso de ações voluntárias educacionais, recreativas, culturais e também de lazer; a contribuição para a melhoria da qualidade de vida, promovendo e apoiando atividades de inclusão social e o resgate da cidadania; e o apoio, por meio da escuta de problemas e sentimentos, são importantes asserções anexadas ao contexto do livro. Realmente assuntos transformadores e muito educativos que buscam a harmonização do leitor com o meio social e humano. O maltrato a menores e a violência física e psicológica contestada e baseada na vida de uma das personagens, revalida a mensagem de apoio contra tais práticas e reafirma a banalidade das ações escondidas nas famílias da nossa sociedade mundial: “Ela me batia com uma tábua. Não tinha televisão, não tinha livros, não tinha nada. Ela passava a comida por um buraco da porta e às vezes misturava a minha comida com a ração de cachorro...”.
“O almoço era uma bagunça, o que serviu para Arthur reparar algo. Eles todos pareciam felizes. Como poderiam? Boa parte das crianças estava sentenciada à morte, não tinha família, não tinha nada. Arthur não entendia, mas parou de pensar a respeito... Talvez fosse esperança. Esperança de uma vida melhor”. Aos poucos, o envolvimento do protagonista à situação cujo ele foi jogado, o faz abandonar seu lado cruel, dando lugar a esperança que nem mesmo o próprio imaginava mais existir em si. Fica claro a mudança de Zani e o seu crescimento pessoal, o que é muito importante para o enredo de Gutti, pois entende-se que o ser humano é realmente um ser mutável, que está propício a receber os afluxos de transformações, mesmo que em muitos instantes se coloquem atrás do bloqueio ocasionado por determinada situação, seja perdas, medo de seguir em frente, conflitos internos ou falta de esperança: “Arthur estava vivendo em uma bolha. Era como se o mundo lá fora não existisse. Toda a sua rotina, seus amigos, suas coisas não existiam mais...”; “...Começou a andar sem rumo, repassando em sua cabeça as frases que ouvira. ‘Às vezes o pior dano que você pode causar a uma pessoa ´deixá-la seguir o próprio caminho’. ‘O moleque já tá destruindo a vida dele sem ajuda de ninguém’. Frases como essa, juntas, eram capazes de abalar, até mesmo, o inabalável Zani”; um verdadeiro Duelo entre Zani e sua consciência, em busca de respostas, se forma de maneira clara e avassaladora. Os pensamentos e as dúvidas lhe tomam a mente e o deixa incapaz de seguir em frente sem procurar a paz, o sossego, a presença daquele que ele mais ama.
A vida passa a ser um ponto central abordado pelo autor, que usa as situações para apontar a importância que o próximo faz em nossas vidas. A importância do contato, do convívio, da aprendizagem, da recuperação de valores familiares. Essa é a esfera do panorama encontrado em A Diferença Que Fiz. A alma nublada do protagonista e toda a sua raiva da vida, levam-no a fugir, em intervalos, da realidade: “Insatisfeito com o mundo real qe vivia, buscava nos livros um novo mundo. E, subitamente, percebeu que podia fugir dali. Não fisicamente, mas, pelo menos sua mente, ele libertava”. A presença marcante da alma feminina quebra o ambiente bruto que às vezes romaneia o cenário. A jovem Yasmin torna-se, em pouco tempo, a diferença na vida de Zani. São momentos notáveis e de muito sentimento escritos por Gutti.
A necessidade de aprender a lhe dar com as perdas da vida é algo que vale ressaltar e que se faz muito presente na obra. Todos aprendem a valorizar a vida quando descobrem que ela é realmente algo que não tem preço. O protagonista problemático cresce, aprende e, sobretudo, passa ensinamentos e apresenta o seu lado humano. No romance, fica evidente a fragilidade do ser humano, a vulnerabilidade a qual cada um retém. O combate contra doenças mortais que antes de consumir a vida, extermina toda a esperança; a luta pela vida; a busca pela felicidade; a procura da companhia que te completa. Gutti usa o dever de avisar que a vida pode ser ainda mais útil se sentida, entendida e vivida intensamente com pessoas das quais gostamos e que têm todos os recursos para fazerem a diferença. Compartilhar e doar o bem é o ato mais necessário para o ser humano. É impossível, para o verdadeiro amante da vida, não se emocionar nos momentos finais do livro. É arrebatador e emocionante.
O ser humano, em razão das diversas disfunções da vida, se perde e esquece de quem realmente é, mas seguir em frente é necessário. Olhar para frente é a mensagem encontrada em A Diferença Que Fiz, livro que o Marcas Literárias recomenda sem contestar. Os erros ortográficos encontrados na obra não atrapalham na apreciação da mesma, mas devem ser corrigidos em uma próxima edição, fica a dica e pedido.
Ao autor, o nosso prestígio completo.
site: http://www.marcasliterarias.com.br