joaoggur 01/03/2024
Caim, o salvador do mundo.
Existem certos livros que, particularmente, me recuso a analisar como simples romances, - se observarmos a conjuntura dos fatos, o conjunto da obra, começamos a vê-los como esplendorosos presentes oriundos dos autores à seus leitores.
José Saramago, já octagenário, se despediu da literatura com esta magistral peça da arte do romance. É como um adeus a si próprio, uma redenção de todos os seus (possíveis e supostos) erros estilicos e narrativos, uma última amostra de toda a sua genialidade.
Remontando ao fatídico episódio bíblico do primeiro assassinato, - os inconfundíveis irmãos Caim e Abel, - Saramago faz, em um estilo de despedida (que acompanha todo o livro), uma reinterpretação das histórias sagradas (tal como fizera em O Evangelho Segundo Jesus Cristo). Após Caim matar seu irmão, Deus condena-o a vadear pelo passado, presente e futuro de uma forma desconexa, - e, paradoxalmente, o altíssimo onisciente mal sabia dos efeitos desta decisão.
O sincretismo entre religião e opinião sempre é polêmico; ainda mais quando permeia a figura de Saramago (um comunista e ateu assíduo). Sendo o leitor cristão ou não, a obra deve ser lida com a comicidade por ela imposta; há momentos tão absurdos (e jamais tocados, originais, autênticos) que a gargalhada é inevitável. Sabendo que já vivera muito mais do que ainda iria vivenciar, Saramago ignora qualquer amarra social ou moral, abusando de comentários (no mínimo) ultrajantes perante uma bancada mais conservadora, - tornou-se, então, um real niilista.
Abraão é chamado de f1lh0 d@ put@; é levantado a hipótese de um suposto pacto entre Deus e o Diabo; por diversas vezes o altíssimo é adjetivado como sádico; tal como sua onisciência, principalmente em relação a cena final, é contestada. O incômodo por parte dos religiosos é válido; Saramago fura o mágico, o romântico, e observa o livro sagrado como ele realmente é, - um escrito imbuído de assassinatos, intrigas, incestos? tal como a vida é. Não vamos nos ?cegar?, não?
Favoritado.