Rosa Santana 18/03/2011
Caim José Saramago
Raça de Caim, sobe ao céu
E arremessa à terra o Senhor!" - Charles Baudelaire
Caim, (Companhia das Letras), 174 páginas, último livro de José Saramago, antes mesmo de aparecer nas livrarias já causara a ira dos crentes que têm na Bíblia seu ponto de partida. E mostra, mais uma vez, a coragem do autor que - a despeito de ter sofrido, em 1991, o veto do governo de seu país para concorrer ao Prêmio Europeu de Literatura pela publicação de O Evangelho Segundo Jesus Cristo - volta ao tema criticando o santo livro - Bíblia - a que chama, na abertura de Caim de o livro dos disparates. Com 87 anos, ele se mostra ativo, como o escritor que, segundo afirmações suas, ainda tem o que dizer em defesa de seus princípios ideológicos. E isso ele faz, doa a quem doer.
O título do livro já nos deixa claro o que vai ser colocado em destaque. Justamente porque José Saramago se interessa pelo percurso social, ético, ideológico da pessoa humana, seu livro, sendo denominado Caim, se centra nessa categoria da narrativa - o personagem. É ele Caim, personagem bíblico - o centro da história e não seu antagonista. Sua saga é a de ter sido condenado por Deus a vagar pelo mundo, em virtude de ter matado o irmão que lhe despertava inveja, já que só as oferendas dele (do irmão) eram aceitas pelo senhor... mas é também a saga do protegido por Deus, que ao lhe fazer um sinal na testa, o coloca acima dos meros mortais, uma vez que em conseqüência disso, estará resguardado do mal. Como D. Quixote (de la mancha), que, sobre seu cavalo, erra por toda a Espanha, desfazendo injustiças, salvando donzelas e combatendo gigantes e dragões, o personagem central desse livro (portando sua mancha!) erra, montado em seu jumento (Rocinante aposentado (p. 145)), por todo o velho testamento, combatendo seu opositor e adversário Deus o senhor "rancoroso" que não hesita em estimular guerras, matar crianças inocentes, punir os bons e fazer com que as pessoas acreditem em situações improváveis.
Nesse espaço-tempo por que erra, o personagem como nos romances de cavalaria - vai se deparando com as ações (para ficar na esfera da teoria literária!) de seu antagonista Ele se vê diante de um Deus cuja voz troveja no céu, aterrorizando uns e exaltando outros sem um critério de justiça; que ordena a um pai que mate e queime na fogueira o próprio filho; que manda fogo do céu para fazer com que crianças (de Sodoma), com que os escravos e as ovelhas (do justo e honesto Job) virassem tição; que faz pacto com o diabo para ver quem pode mais; que se esconde sob nuvens e colunas de fumo; que dizima populações inteiras, sem nenhum critério... Tudo isso vai fazendo com que ele se torne um Caim cada vez mais decepcionado, logrado por um criador mesquinho que só é passível de sentimentos como o menoscabo, a desconsideração, a repulsa.
Por não se solidarizar com os acontecimentos com que se depara, Caim se situa sempre como um estrangeiro, onde quer que esteja, no tempo e/ou no espaço. Ele vê o avesso e o falso das situações a que assiste e, dialogando de igual para igual com o responsável por elas, o desmascara e o rebaixa à esfera do cotidiano cômico. Assim, Saramago chega mesmo à carnavalização, prevista por Mikhail Bakhtin, dado o caráter cômico-fantástico-alegórico com que encara e descreve os fatos; com que faz de Caim um personagem sarcástico e mesmo insolente que não se submete àquilo com que não concorda; por criar situações em que valoriza o riso, o inusitado... Tudo perde o caráter de sagrado, para cair no ridículo-fantástico-irônico, como, por exemplo, entre outros:
? a circunstância em que o senhor, irado, enfiou, em Adão e Eva, a língua pela garganta abaixo (09)
? a analogia à Santíssima Trindade, representada por Noah, Lilith, (ao centro) e Caim; (72)
? o narrador citando Josué como impossível modelo estilístico mesmo no importante capítulo retórico das pragas e maldições tão pouco freqüentado pela modernidade, ainda que naquela época em que as maldições eram autênticas obras-primas literárias, pelo crudelíssimo exemplo que representava (112);
? a fala do senhor, Não posso fazer parar o sol porque parado ele já está, sempre o esteve, desde que o deixei naquele sítio. (...) O que se move é a terra (118);
? o espetáculo pirotécnico montado para a descida de Deus à terra (148);
? Caim, andando por tantos e diferentes espaços, montado em seu jerico, sem o Guia Michelin(146);
? a revisão do sistema hidráulico do planeta de que se ocupava Deus, depois do dilúvio. (161);
Assim, Caim vai se configurando como o combatente de injustiças, de episódio em episódio, todos eles um tanto quanto grotescos, e totalmente ausentes de sublimação. Sua independência e "desgarramento", dado à sua posição de andarilho, desliga-o de todos os valores burgueses: família (e qualquer tipo de relacionamento mais duradouro), propriedades... Nada de idílico o prende, porque, vasto, o espaço o conclama para que o reconstrua sobre bases novas, mais justas e humanas. Buscando, na verdade o tão propalado Antropocentrismo...
Longe de ser um recalcado ou ressentido com seu criador, Caim não se identifica com os valores do opressor e luta contra eles com uma retórica lúcida e coerente a tal ponto de deixar implícito o que já afirmara JS: "À Bíblia eu chamaria antes um manual de maus costumes. É a palavra que torna possível a Caim romper com toda espécie de servilismo diante do sofrimento dirigido por Deus aos humanos. É pela palavra que ele vence seu opositor quando do julgamento por ter assassinado o irmão e é pela argumentação vigorosa que faz com que Deus se dobre, estabelecendo com ele um acordo de proteção. Sua maior propriedade é a lucidez, em oposição à cegueira já que O Senhor enlouquece as pessoas (82). E, se as enlouquece, as cega...
Mas, quem é Caim? Com o nome grafado em minúsculas, aliás, como o dos demais personagens, ele perde a característica de substância própria, e é instaurado no conjunto de seres gerais. Nada o identifica e o torna único, específico, entre os da sua espécie. Ademais, ele vaga não só de espaço a espaço, mas, tb, de tempo em tempo, muitas vezes indo de um passado a um futuro, pulando um presente... É a raça humana que Saramago retrata aqui. Somos, todos, peregrinos, a errar por um caminho que não sabemos ao certo qual seja e nem para onde nos leva... Como cavaleiros da triste figura, (nossos Roncinontes agora são de outra esfera) estamos todos presos a um destino, que, por falta de fé em um Deus para nos livrar dos males, todos, temos que crer e confiar é em nós mesmos.
Outrossim, o poder que o personagem bíblico faz da oratória, o dom que ele tem de manejar a palavra estabelece, também, uma analogia entre ele e todo aquele escritor, filósofo, pensador, que, ao longo do tempo e ainda hoje, dialoga com Deus de igual para igual como bem deixa claro o autor, no final da narrativa: ... a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda (p. 172). Igualmente, Caim somos nós, cúmplices desses autores que, "apesar de", continuam cometendo o crime e... escrevendo: contra o "status qüo", contra todo o pensamento institucionalizado do poder... Ler, valorar e discutir o que publicaram é somar-se às suas vozes e, de certa forma, libertá-los da censura. Admirar o que eles tiveram a coragem de pensar e de dizer é fazer-lhes justiça!
Formamos, com Caim/Saramago, Nietzsche, Baudelaire, Jean Genet, Píer Apolo Pasolini, Jean Paul Sartre, entre tantos outros, uma raça gouche, a raça de Caim que, nas palavras de Baudelaire, tem por encargo arremessar Deus à terra, desmistificá-lo, carmavalizá-lo!
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Sobre a palavra "gouche", tenho a dizer que ela foi empregada aqui, muito mais como um "antropofagismo", de Mário e Oswald de Andrade. Apesar de a gramática reconhecer "gauche" , neologismos são perfeitamente aceitáveis a despeito da norma padrão de qualquer idioma.
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