Luis 12/01/2018
Nas trincheiras com o Cony
Precisamente, nesse momento em que escrevo, completa-se uma semana da morte de Carlos Heitor Cony. Desnecessário dizer o impacto que o desaparecimento de um gigante como ele significa para a literatura brasileira. Como é de praxe, sua morte acaba ironicamente reavivando o interesse de muitos por conhecer sua obra, e de outros por retomar o convívio com um escritor seminal. Estou nesse último caso pois, desde 2014, não lia nada dele. Decide compensar esse atraso logo com dois de seus mais célebres títulos, para mim inéditos : “O Ventre”, sua estreia na ficção, publicado em 1958 e “O Ato e o Fato”.
O escritor carioca é um dos raros casos de brilhantismo tanto na seara ficcional quanto no jornalismo, sendo que nesse último caso, coube-lhe a glória suprema de ter capitaneado a primeira reação pública ao golpe de 01 de abril de 1964. “O Ato e o Fato”, lançado no calor da hora, é o livro que registra esse momento e definitivamente colocou Cony na História.
Na época, o autor era o chefe do grupo de redatores do “Correio da Manhã”, provavelmente o jornal mais influente do país na ocasião e que vinha adotando uma oposição moderada ao governo de João Goulart, só metendo o pé no acelerador nos últimos momentos de poder do político gaúcho, quando engrossou o coro da sua saída, publicando os editoriais “Basta !” (31/10/1964) e “Fora !” (01/04/1964). Cony, que assinava uma coluna no segundo caderno do jornal, estava convalescente de uma cirurgia e não participou da redação dos editoriais citados, embora os tenha lido antes da publicação. Nos meses anteriores, quando o cenário já era tenso, o articulista era constantemente acusado de alienado, pois privilegiava o tratamento de assuntos relacionados às artes em geral no espaço de sua coluna. Adicionalmente, podia ser considerado longe de ser um apoiador do PTB e do grupo que orbitava em torno de Goulart, a quem pessoalmente achava demagogo e despreparado. Por tudo isso, foi no mínimo surpreendente, a súbita tomada de posição do escriba tão logo os tanques dos rebeldes foram colocados nas ruas, mas , tal como um profeta, Cony detectou que acima das paixões políticas, o que estava em jogo naquele momento era a própria democracia e assim deu o primeiro grito.
O artigo inaugural, “Da Salvação da pátria”, saiu em dois de abril, dia seguinte ao “movimento”, e resultou de uma incursão de Cony e Carlos Drummond de Andrade, também cronista do “Correio” à região próxima ao Forte de Copacabana onde viram um dos revoltosos montar uma barricada com débeis paralelepípedos empilhados. Ao interpelar o militar, o escritor recebeu como resposta que era uma “barreira” a fim de impedir o I Exército de retomar o Forte. Um pouco depois, ouviram um tiro mais adiante, pensaram logo que seria a tão esperada batalha entre as forças legalistas e revolucionárias, mas descobriram que era um velho oficial de reserva que, irritado com a reação de um operário que gritou Viva Brizola”, atirou para o alto com sua velha garrucha e agora tentava surrar o rapaz. O poeta e o jornalista voltaram para suas casas, Cony pegou a máquina portátil e começou a desancar a quartelada.
Durante os dois primeiros meses da redentora, as tijoladas foram quase diárias e solitárias mediante o imenso e (envergonhado) silêncio da chamada grande imprensa. Cony denunciava as arbitrariedades a que os vencidos eram submetidos, as esdrúxulas resoluções, a “farsa” eleitoral de Castello ou ainda a desconfortável posição de Lacerda, um dos mais ferrenhos apoiadores civis do Golpe e que esperava que o poder o fosse oferecido de bandeja, o que obviamente não aconteceu.
Conforme era previsto, as pressões sobre o jornalista se intensificaram, com ameaças em telefonemas anônimos, recados à direção do Correio, culminando mesmo em um processo movido pelo então Ministro da Guerra, Costa e Silva, no qual testemunharam a favor do autor, gente do calibre de Alceu Amoroso Lima, Antônio Callado e o já citado Carlos Drummond de Andrade. É curioso registrar que o presidente da ABI, Celso Kelly, telefonou a Cony se desculpando por não depor pois não queria se indispor com o Ministro.
Apesar de todos esses contratempos, chama a atenção a veemência com que o autor descreve a situação então vigente, sem meias palavras e sem dourar a pílula, em termos que surpreendem mesmo para os tempos atuais, em uma demonstração inequívoca de coragem. Ressalta-se que embora sob atmosfera sufocante, nos petardos tinha espaço até para o humor, como quando Cony ressalta o papel dos “histéricos e analfabetos” civis que soltavam jorrões em torno dos militares como Sandra Cavalcanti, Hélio Fernandes, César de Alencar e Flávio Cavalcanti.
O escritor encerraria sua participação no Correio em fevereiro de 1965, após a publicação do texto “Ato Institucional II”, uma paródia sobre o segundo grande ato administrativo da Ditatura. Junto com o artigo entregou sua carta de demissão ao redator Chefe, Antônio Callado que, solidário, saiu junto com Cony.
Ênio Silveira, o lendário editor da Civilização Brasileira, no final de maio de 64 teve a ideia de reunir as crônicas políticas publicadas por Cony desde de 02 de abril. O próprio Ênio escolheu o título, que batiza uma das primeiras crônicas : “O Ato e o Fato”.
O lançamento da obra foi a primeira manifestação pública coletiva contra o regime, e o livro virou um clássico de como se fazer jornalismo com a pena altiva, ou, para ser mais explícito, com a fidelidade aos ideais democráticos, ou, para ser mais claro ainda, com vergonha na cara.
Que o velho Cony sirva de inspiração a tantos por aí.