Luis 04/01/2013
O general pragmático
Se aplicarmos aos generais da ditadura o antigo costume, emprestados dos monarcas antigos, de conferir títulos e adjetivos conforme as suas características, teríamos, ainda que de forma resumida, um breve painel do perfil dos governantes brasileiros no período 1964-1985.
Castelo, com suas veleidades intelectuais alimentadas por parentescos ilustres (era primo de Rachel de Queiroz e descendente de José de Alencar), poderia ser chamado de “O constrangido”, já que tentava disfarçar o cunho autoritário do movimento que surgia, se disfarçando de “presidente constitucional”.
Costa e Silva seria “O truculento”. Com a sua anuência em relação à chamada linha dura, culminando com a decretação do AI-5.
Médici, “O populista”, dirigia o país sentado nas tribunas de estádios Brasil afora, com o seu radinho de pilha no ouvido.
Figueiredo, “ O irritadiço”, parecia ter a Presidência como um fardo, preferindo os cavalos a qualquer outra coisa que remetesse a povo ou política.
Talvez, entre todos, aquele que tenha tentado exercer o seu poder de forma mais discreta, entre avanços e recuos do período, seja mesmo o gaúcho Ernesto Beckmann Geisel.
No longo depoimento fornecido a Maria Celina D`Araújo e Celso Castro e editado na prestigiada coleção do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) (Editora FGV), o ex- presidente discorre longamente sobre a sua formação intelectual, forjada em meio ao ambiente efervescente das escolas militares dos anos 20, em pleno desenvolvimento do tenentismo, e da sua participação nos episódios que levaram à Revolução de 30 e nos anos seguintes.
É interessante notar que sua trajetória corre em paralelo com a de seu irmão, o também General Orlando Geisel, que, de certa forma, até 1974, foi quem mais teve influência e atuação na vida pública, assumindo posições muitas vezes menos conservadoras do que o Geisel mais famoso, como, por exemplo, durante o episódio que ficaria conhecido como “novembrada”, em que o Marechal Lott deu um contragolpe para assegurar a então ameaçada posse de Juscelino Kubitschek . Orlando apoiou Lott. Ernesto foi contra.
Essas divergências ficariam soterradas em 64, quando praticamente a totalidade das Forças Armadas, pretextando a quebra de hierarquia e uma suposta marcha comunista capitaneada por João Goulart, desencadearam a “Redentora.”
Nessa fase, Geisel se alinha ao grupo mais “liberal” do movimento, liderado por Castello e que contava entre outros com Golbery do Couto e Silva, que mais tarde viria a ser uma espécie de eminência parda de seu governo. Após um período dedicado à questões internas do Exército, em 1970, com a subida de Médici ao poder, Geisel assume a Presidência da Petrobrás, naquele momento uma instituição estratégica dentro do modelo desenvolvimentista adotado pelo regime, asfaltando assim o seu caminho até o Palácio do Planalto.
A segunda e mais importante parte do livro, cobre as memórias e reflexões de Geisel sobre o seu período à frente do país (1974-1979) e aí, a face centralizadora e algo pragmática do General, nos dá uma dimensão exata das contradições do personagem.
Talvez pela certeza de que o volume só seria publicado após a sua morte ( e mesmo assim, com a possibilidade de veto por parte da família), Geisel não se furta de defender opiniões polêmicas e politicamente incorretíssimas, mesmo sob o prisma daqueles tempos : Defende a atuação do Exército durante a chamada luta armada, embora condene os “excessos” de certos setores; desqualifica a oposição do MDB, em especial Ulisses Guimarâes; faz pregação pelo voto indireto, afirmando que o baixo nível cultural do povo não permitiria uma escolha consciente, sobretudo para Presidente da República; e, como não poderia deixar de ser, defende pontos de seu governo, como a controvertida relação com a linha dura, capaz de exonerar o ministro Silvio Frota (episódio magistralmente contado por Elio Gaspari em um dos seus volumes sobre a Ditadura), mas também de aceitar os infames resultados dos IPM´s sobre as mortes do jornalista Wladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho. Há também uma longa análise sobre as motivações do chamado “pacote de abril” , conjunto de medidas que uma vez reprovadas pelo Congresso, em 1977, levou o governo a fechá-lo (ainda que temporariamente) e adotá-las por meio de decreto.
Por fim, Geisel opina sobre o período de Figueiredo e dos governos civis até Itamar Franco (as entrevistas vão até 95), deixando clara a sua visão centralizadora do processo político, avessa a negociações e diálogos com os diversos atores do cenário democrático.
Independentemente do nosso julgamento sobre o personagem, o livro é fundamental, pois traz a público, talvez, o único testemunho histórico relevante (levando-se em conta o caráter recluso de Geisel, notadamente após deixar a presidência) de uma figura que sedimentou o caminho para uma abertura política, que, se não transcorreu da forma ideal, pelo menos se deu de maneira menos traumática que em outros países que passaram pelo mesmo processo.
Talvez esse tenha sido o maior legado de Ernesto Geisel : sua postura pragmática, atenuando os radicalismos de lado a lado.