Desesterro

Desesterro Sheyla Smanioto




Resenhas - Desesterro


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Alexandre Kovacs / Mundo de K 31/07/2017

Sheyla Smanioto - Desesterro
304 páginas - Editora Record - Prêmio Sesc de Literatura 2015, Prêmios Jabuti e Biblioteca Nacional 2016, Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2016.

Tinhosa essa jovem Sheyla Smanioto, ainda nem completou trinta anos e já é dona de uma linguagem forte e inovadora, inspirada na melhor tradição de autores como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. No entanto, não repete em nada o caminho já percorrido pelos clássicos, ela prefere escrever com coragem e voz própria sobre os temas, estes sim, infelizmente, ainda os mesmos na sociedade brasileira, os eternos movimentos migratórios que apenas transferem a miséria e a exclusão de grandes parcelas da população do interior para a periferia marginalizada das cidades, a violência doméstica diária contra a mulher e um estado de indigência permanente do povo, difícil de remediar porque é o reflexo de uma fome ainda maior, a fome de dignidade e educação. O texto de Sheyla vem carregado de imagens fortes, muitas vezes violentas, mas sempre com poesia e uma carga de dramaturgia que mistura realidade e sonho, refazendo também novos caminhos para o desgastado realismo mágico da literatura latino-americana, um efeito que nos enfeitiça e, só então, percebemos como somos conduzidos pelo ritmo da escrita que vai recriando a gramática em função de um objetivo estético maior, sensorial mesmo.

Partindo da cidade fictícia de Vilaboinha, não situada no tempo e no espaço, mas que deduzimos ser alguma localidade no interior da região norte ou nordeste do Brasil, a autora imaginou quatro gerações de mulheres que lutam para sobreviver em um ambiente de pobreza extrema. A louca Maria da Penha é a avó que precisa criar sozinha as duas netas: Maria de Fátima e a menina que nem nome tem, mas que "vê tudo, tudinho, até o que não deve". A mãe das duas, Maria Aparecida, filha de Maria da Penha, morreu no parto da filha mais nova que não tem nome. A última geração dessa sequência de Marias é a bisneta, filha de Maria de Fátima que, para decepção da velha Penha, não vai ter nome de santa, vai se chamar Scarlett. Em Vilaboinha cada ser vivente é uma vitória.

"Em Vilaboinha quase não tem criança pequena fora a bisneta da Penha. Não é difícil nascer em Vilaboinha, mas faz tempo que lá não tem parteira. Só nasce mesmo a criança que vai tateando até a beira, não cansa, o miúdo que vai tateando tateando até que alcança, na carne, a vida esse buraco imenso. As outras ficam perdidas, o cordão umbilical pelo pescoço, uma preguiça de sair da barriga, dormindo dentro mais um pouco. A bisneta da Penha arranjou jeito... a mãe dela Maria de Fátima que o diga. Olha, olha que beleza essa bichinha." (Pág. 45)

Ter nome de santa não parece ajudar em nada as mulheres de Vilaboinha a lutar contra a crueldade e violência dos homens, da cultura do estupro tão presente em nossa sociedade. O único personagem masculino do romance é o Tonho, viúvo de Maria Aparecida e, ao mesmo tempo, pai e marido de Maria de Fátima, agora pai também de Scarlett. Maria de Fátima sonha fugir de Vilaboinha para escapar de Tonho, das surras frequentes: "Tonho tantas vezes batendo em Fátima ela nem se importa, mulher nenhuma morreu de apanhar de marido, exceto as que estão mortas." O homem, na sua violência, é comparado e assombrado pelos cães que ele costuma matar a pauladas.

"Em Vilaboinha, lá para as bandas do norte, quase não tem cão nenhum fora o da vó Penha. Não é proibido, mas o Tonho não gosta do barulho deles todos latindo quando alguém vem chegando. O Tonho não gosta dos latidos, diacho, ninguém tem que saber que ele vem chegando, por isso ele mata tudo que é cão na paulada. Ele assobia, o Tonho. Chama o cão assim bem perto. O cão vacila, abaixa o rabo. O cão vacila, acaba que vai. Quer saber porque chamam. Ele acerta nas costas do bicho e fica ganindo baixinho. O cão, não o Tonho. O cão devagarzinho se vai morrendo. O Tonho não, ele gosta é de ouvir o latido esparramado do cão no chão com tripa sangue osso suspiro. Não do cão, do Tonho. Se bem que um pouco assim bem antes do cão ter morrido, um bem pouco antes, não dá nem pra dizer quem é cão e quem é Antônio. Fátima tem certeza: — É o cão." (Pág. 9)

Maria de Fátima consegue fugir de Vilaboinha depois de um fato surpreendente que, é claro, eu não vou adiantar aqui para manter o interesse do leitor. O romance passa a alternar momentos da vida de Maria de Fátima, vinte anos depois, em um bairro da periferia de São Paulo chamado de Vila Marta e tudo o que ela deixou em Vilaboinha. Ela mora em um barraco miserável, próximo a uma escavação que aos poucos vai revelando os fantasmas de seu passado em um processo de "desesterro", neologismo que empresta o título ao romance.

"O barraco de Fátima é quarto e cozinha, bem no meio da Vila Marta, ela mora sozinha . As poucas coisas que a Fátima tem ficam guardadas em caixas de papelão de biscoito Costone, amontoadas atropeladas juntas todas aos pés da cama, um colchão. As poucas coisas que ela tem não chegam e encher duas três no máximo quatro caixas, uma delas fica aberta, as tampas braços para o alto pedindo o que falta. Quando se mexe dormindo, Fátima guarda os pés juntos entra as caixas, ela toda espichada, toda espichada os pés entre as caixas, ela toda entre as caixas, gostoso demais, gostoso que nem guardar língua quente no buraco osso do dente." (Pág. 93)

Cuidado leitor distraído, este romance não é fácil e vai te pegar de jeito, como afirma a autora uma das muitas epígrafes semeadas ao longo do livro: "LER É: devorar a fome dos outros." Nada é o que parece no universo mágico dessas Marias brasileiras. Vilaboinha e Vila Marta são lugares imaginários e, contudo, tão reais. Sentir o sofrimento dessas mulheres pode ser mais importante do que entendê-las. Essa danada da Sheyla Smanioto escreveu um romance que é o sonho de muito escritor já consagrado e que vai permanecer por muito tempo, garanto.

TRANSFORMAÇÃO É: migração dentro.

MIGRAR É: ir embora e ainda assim ficar.
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Diogo 31/05/2021

Acho que vi a autora falando que é um livro para ser mais sentido do que entendido. Creio que é isso mesmo. O livro provoca muitos sentimentos. É bem pesado, tenso, obscuro. Retrata miséria, abandono, violência. Muita violência, de vários tipos. A linguagem é um tanto poética, e mistura elementos surreais com outros muito reais e crus. Boa leitura, embora eu tenha achado um tanto repetitiva.
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Mi 29/12/2020

Direto ao soco
“Ir direto ao soco”, foi assim que a escritora Sheyla Smanioto descreveu como conduziu a versão final de Desesterro. Ao participar de uma oficina de Marcelino Freire, ela entendeu que precisava desfocar da sucessão de fatos e focar na criação de efeitos, num processo de imagem e efeito. Assim, a cada capítulo, ela nos conduz a imagens a fim de que a gente possa sentir os efeitos.

Assisti hoje a uma entrevista da autora porque eu gosto do exercício de tentar juntar “por que” que separei durante a leitura, transformando-os em “porque” de respostas. Observando o fluxo de pensamento dela, entendi o tanto de latidos que ouvi ao ler o livro. É no silêncio que eu, Milene, encontro minha loucura e, como preciso dela, o barulho me incomoda. Os constantes latidos de cães descritos na obra realmente me perturbaram. Eu queria que ELES parassem de latir. Quem são os cães que latem incessanteMENTE pra vocês?

Desesterro é o romance de estreia de Sheyla e venceu o Prêmio Sesc de Literatura em 2015. Ele nos apresenta a história de algumas Marias, a começar por Penha, que é mãe de Aparecida (Cida), que é mãe de Fátima, que é mãe de Scarlet (Maria). E cada uma dessas Marias nos leva a enxergar a diversidade da vida de mulher: tem Maria que morre, Maria que apanha, Maria que fica, Maria que foge, Maria que some. Segundo a autora, essa também foi uma forma de ressignificar o que ela entendia como papel da mulher, ou melhor, a pluralidade do termo.

Muitas vezes, terminei um trecho do livro sem conseguir me decidir se foi real ou um sonho (meu, da autora, da personagem...). E isso a Sheyla também explica quando menciona a intenção de “levar a imagem a um nível extremo (ao erotismo)” e que pretendia que o leitor o tempo todo pensasse “é real, mas não é real, é muito real, mas não é real”. Ela conseguiu! Eu ainda estou comendo o pó da estrada até São Paulo junto de Fátima e, de repente, acordo com a boca seca de fome... de amanhã esperançoso, de justiça, de igualdade, de respeito. Temas que a autora vai nos levando a engolir a seco.

Ela foi direto ao soco e me atingiu. Atingirá a todos os cansados de comer areia na estrada da miséria e dos abusos.

site: https://www.instagram.com/p/CI1DQKKjiJr/?utm_source=ig_web_copy_link
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Tati Iegoroff (Blog das Tatianices) 17/04/2021

Uma experiência literária
Ler Desesterro é, sem dúvidas, uma experiência literária. Acho que o próprio título já nos mostra que algo diferente está por vir e a capa ajuda a dar um toque final à complexidade da obra. Não à toa, a obra foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura, na categoria romance — ainda que sua linguagem seja muito mais poética que prosaica —, do Prêmio Machado de Assis (da Biblioteca Nacional), além de ter sido premiado no Jabuti e finalista do Prêmio São Paulo.

O livro é dividido em partes, mas que se misturam, assim como as muitas vozes que compõem a narrativa, mas que, por vezes, parecem uma só. Nem tudo tem nome, nem mesmo os sentimentos.

Desesterro é um livro que diz e não diz. Se em alguns trechos eu pensava “será que a autora está falando disso?”, em outros, eu tinha certeza. E por disso entende-se muita coisa: miséria, violência, estupro, abandono paternal.

Ainda que sejam temáticas sérias e pesadas, a leitura flui, porque as palavras escorrem em seu tom poético. E o “disse não disse” também nos ajuda a engolir duras verdades. Mas há também outras temáticas na obra, como o passado que nos assombra e o ato de migrar (interna ou externamente).

Sem uma linha temporal clara e com construções gramaticais bem diferentes do comum, Deseterro pode assustar alguns leitores. Mas é uma leitura que merece um esforço, talvez uma leitura em voz alta de alguns trechos.

Desesterro é uma leitura para quem quer fugir do óbvio, mas também para quem consegue levar alguns socos no estômago ao virar das páginas. Por fim, uma leitura que irá surpreender a quem decidir realizá-la.

site: https://blogdastatianices.com/2021/04/14/desesterro-sheyla-smanioto/
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Paulo Silas 27/12/2022

Vivências árduas e sôfregas de mulheres estão postas nesse peculiar romance a partir de seus relatos - ora de umas sobre as outras, ora dessas sobre si mesmas. Diz-se peculiar ao considerar a forma com a qual a narrativa é construída, exigindo do leitor uma maior atenção e interesse. O formato não torna a obra mais ou menos interessante, assim como não necessariamente torna menos ou mais aprazível o processo de leitura - isso, essa percepção, é algo que vai depender do leitor durante o o seu particular processo de leitura, tratando-se também nesse ponto de uma questão de gosto. Seja como for, a obra é muito bem escrita e a história convincente, fazendo jus ao prêmios recebidos.

Várias histórias que compõem uma única vão sendo contadas aos poucos, em pedaços, de diferentes partes, de diferentes épocas, de diferentes perspectivas, culminando nesse singular romance fragmentado. As Marias tantas que aparecem nessa trama (Fátima, Penha, Cida, Scarlett) protagonizam abandonos, violências, solidão e a pobreza enquanto caminham e constroem cada qual o seu trajeto, sempre permeado por um desalento que parece ser intrínseco a cada uma das personagens - mesmo naquela que sai de Vilaboinha para tentar a vida em São Paulo. É uma história constituída pelas histórias de uma linhagem de mulheres que respiram e vivem o sofrimento.

A forma causa estranheza. Não há linearidade na narrativa. É um livro que precisa ser muito mais sentido do que compreendido em uma estrutura cartesiana, exigindo bastante do leitor. Como registram Michel Laub e Noemi Jaffe na orelha do livro, "não é um caminho fácil, pois exige do leitor uma atenção e entrega incomuns num tempo de fragmentação e superficialidade". Terra é um bicho que come gente - como consta na obra. "Desesterro" então não deixa de ser um livro que come o leitor - se isso é bom ou se ruim, cabe ao próprio definir após a leitura.
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Dori 25/05/2022

"Roncar é: pôr palavra na boca do estômago"
Incrível e complexo, por muitas vezes eu me perdi, de uma forma boa, no texto; a linguagem utilizada de uma forma regional e direta, com uma pontuação que transmite diretamente a ideia da fala, do diálogo, é muito bem empregada. O texto, nem se fala, três gerações, três Marias que vivem e sofrem e dependem da terra e acompanham as suas transformações; é genial, bem feito, eu amei.
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Beatriz3345 18/01/2024

Desesterro - Seyla Smanioto
304 páginas - Editora Record - recebeu o prêmio Sesc de literatura 2015, prêmios Jabuti e Biblioteca Nacional 2016 e foi finalista do prêmio São Paulo de Literatura 2016.

A escritora traz uma linguagem que nos faz sentir e viver a história. Ela usa metáforas entre a realidade e o sonho, que te faz ficar em dúvida do que é e o que não é real.

O "Desesterro" conta a história de 4 gerações de mulheres que lutam contra a fome. A protagonista se chama Maria de Fátima, ela tem seus fantasmas do passado desenterrados quando a escavação começa na periferia de São Paulo.

Ao decorrer da história nos deparamos com os temas: pobreza, cultura do estupro, fome e migração. O livro é doloroso e poético. Não contém enrolação, é certeiro como um soco no estômago.

Sheyla Smanioto ganhou o meu coração. A ideia, a escrita poética, a dor e o desenrolar da história, é tudo muito perfeito!!

Recomendo demais a leitura. ???
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Leituras do Sam 03/05/2017

Com uma linguagem poética, uma narrativa que transita entre a realidade e o sonho (assim como a transformação dá mulher em gorila dos circos) o livro aborda temas caros para as mulheres, como a violência doméstica e maternidade dentro de um contexto social de vulnerabilidade.
Acredito que não precisa ser tão repetitivo e nem tentar ser tão inovador esteticamente, pois isso deixou o livro pesado e sem delicadeza.

@leiturasdosamm
Carlos 25/01/2018minha estante
Acabei de ler o livro e tive a mesma sensação: um tanto repetitivo e, as vezes, cansativo.
Mas gostei bastante da linguagem usada.


Leituras do Sam 03/02/2018minha estante
Pois é, achei uma pena, mas no fim gostei.




Na Literatura Selvagem 15/12/2018

bela descoberta em 2018...
Sheyla Smanioto entrega ao leitor uma obra pungente, com uma narrativa poderosa, que faz da temática que já beira o lugar-comum - apesar de sua importância em se discutir - um conjunto inusitado de poesia, lirismo e crítica/denúncia social. Desesterro é o grito de Fátimas, Penhas e Marias, sobre a violência sofrida de tantos Tonhos que perpassam o caminho de nós - mulheres - em algum determinado ponto de nossas vidas [infelizmente].

leia mais em

site: http://naliteraturaselvagem.blogspot.com/2018/11/a-poetica-de-sheyla-smanioto-em.html
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fev 13/01/2021

Eu não gostei de muita coisa desse livro. O tema muito me interessa, mas a forma como foi trabalhada não me apeteceu. Não curti a escrita do início do livro cheia de frases curtas e umas repetições desnecessárias. Ao meu ver atrapalha muito o andamento da leitura. Não curti a narração.

Nem mesmo os elementos fantásticos que vi na história fez diferença para mim. Vida que segue porque não é sempre que temos uma experiência boa. E tudo bem experiências literárias são diferentes para cada um.
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