Procyon 12/07/2022
Beowulf ? Resenha
?O destino se desvendará naturalmente?.
Não se sabe ao certo quando o primeiro poema épico anglo-saxão Beowulf foi composto (estima-se que tenha surgido entre séculos VII e início do XI). Ele se trata de uma das maiores epopeias do norte europeu e uma das obras mais antigas da história da língua inglesa. Também não existem registros de como e quem escreveu o texto. Felizmente preservado durante mais de doze séculos, sua importância histórica, literária e cultural, todavia, fora praticamente ignorada até a publicação do formidável ensaio de J.R.R. Tolkien (?Beowulf: The Monster and the Critics?, 1936), um de seus admiradores mais famosos.
Beowulf é uma das obras da época da Inglaterra Anglo-Saxônica mais estudadas. Sabe-se da existência de um manuscrito único datado do ano 1000 d.C. ? quase destruído no incêndio de Copenhague no século XVIII ?, catalogado no Museu Britânico, que, entretanto, não possuía título até meados de 1805, quando fora intitulado e publicado pela primeira vez dez anos depois. Beowulf é hoje considerado o mais importante manuscrito que nos legaram os povos anglo-saxões, quer por seus valores linguísticos, quer por seus valores poéticos.
A tradução do manuscrito, por Tolkien, foi uma realização precoce e muito peculiar. Ele a completou em 1926, porém mais tarde ele retornou a ela a fim de correções apressadas, mas parece jamais ter considerado sua publicação. A edição adjacente é dupla, pois existe um comentário extremamente esclarecedor sobre o texto do poema pelo próprio tradutor, na transcrição de uma série de conferências proferidas em Oxford na década de 1930. Da inerente atração criativa de Tolkien pelos detalhes, nessas conferências, surge um sentido de objetividade e clareza em sua cosmovisão. É de tal modo como se ele penetrasse no passado se imaginado junto a Beowulf e seus homens, por entre cotas de malha ao aportarem com seu navio na costa da Dinamarca. Essa edição traz ainda Sellic Spell, um ?conto maravilhoso? escrito pelo próprio, e que sugere quais poderiam ter sido a forma e o estilo de um conto folclórico sobre Beowulf em inglês antigo, em que não havia uma associação com as lendas históricas dos reinos setentrionais.
No que concerne ao estilo e a versificação do poema, Beowulf pertence a uma tradição heroica herdada dos povos germânicos. Prevalece no poema um tom solene bem como a riqueza de alusões, característico das epopeias clássicas, tal como a Ilíada e a Odisseia de Homero e a Eneida de Virgílio ? aliás, talvez o principal paralelo que se pode fazer com a poesia homérica esteja na sua origem, fruto de uma tradição primordialmente oral. De tal modo semelhante é que Beowulf descreve eventos heróicos na vida de um único indivíduo. Por meio de uma análise da vida do herói, o poeta busca refletir a história de seu tempo, se valendo de diversos artifícios estilísticos ? como, por exemplo, os epítetos, as expressões idiomáticas típicas do anglo-saxônico, os sinônimos, as aliterações, etc. Associadas a isso, o poema apresenta também o emprego recorrente das kennings: um recurso metafórico, uma palavra composta de maneira figurativa em lugar de uma única palavra poética.
É uma narrativa de cunho aristocrático (pois trata-se, na maioria das vezes, de reis e guerreiros), por onde a qual os arquétipos da sociedade medieval escandinava cumprem uma função didática. Essa sociedade, guiada pela glória e pela honra, composta de Daneses, Jutos, Saxões e Frísios (que correspondem a atual Dinamarca), migraram através do Mar do Norte para atacar de surpresa e por conseguinte invadir as Ilhas Britânicas a partir de 449, destruindo os povos célticos nativos que lá habitavam por mais de um milênio e, absorvendo e resinificando sua cultura local, fundando a nação inglesa.
O poema se estrutura dividindo-se em dias partes: a primeira, que narra algumas das proezas da vida de um jovem Beowulf, o guerreiro geata que vem em auxílio de Hrothgar, rei dos dinamarqueses, para libertar suas terras do monstro Grendel; e a segunda, que se foca no declínio da vida do guerreiro, já velho e rei (de Geatland, que a princípio seria parte da atual Suécia), após uma luta com um dragão que aterrorizava seu povo. Paralelamente aos episódios centrais, notam-se episódios secundários e digressões ao longo to texto que se concentram em porventura elucidar os feitos do herói epônimo, sua coragem e bravura, bem como os de outros heróis e reis do passado, como, por exemplo, a morte de Hyegelac.
Ele também se estrutura na utilização de contrastes, como o efeito dialético de luz e sombra, além dos conflitos entre juventude e velhice, coragem e medo, imprudência (do rei Hygelac) e crueldade (rei Heremod). Personagens e situações, dessa forma, tornam-se arquetípicos através de repetições verbais e expressões que (re)afirmam os valores éticos ? que é o código germânico de lealdade aos chefes e suas tribos, e a vingança aos inimigos ? reais ou imaginários. Assim, trata das lendas daqueles povos, de seus mitos de origem legitimadores, como forma de identificação histórica de um grupo, e dos indivíduos, a fim de se legitimar ideologias e poder político ? ou como parte do mundo religioso.
O poema parece ter sido escrito sob uma perspectiva cristã. As histórias eram contadas por recitadores de poemas, conhecidos como ?scops?, com raízes na Escandinávia oitocentista. Os povos germânicos (pagãos) continuaram adorando seus deuses até que viesse a introdução do Cristianismo na Europa ? que teve início no século VIII com a chegada de missionários à Dinamarca. O paganismo escandinavo, em contraposição, não possuía uma teologia sistemática e carecia de conceitos absolutos do Bem e do Mal ou da vida após a morte. A religião era uma questão de cumprimento de certos sacrifícios e rituais ao invés de espiritualidade individual. Um ciclo de mitos falava da criação do mundo e de sua destruição final. Assim, acreditavam que todas as coisas estavam sujeitas aos desígnios do destino ? inclusive os deuses, que deveriam perecer no Ragnarök, o cataclismo final que destruiria o mundo.
Nesse sentido, as celebrações e reuniões são itens indispensáveis na narrativa heróica de Beowulf, visto que a função social das poesias heroicas anglo-saxãs era enaltecer os feitos e atos de coragem da sua aristocracia, assim como os valores de honra, bravura e lealdade estimados nos círculos sociais. O cenário que o poema evoca é lúgubre, antigo e distante; a história que remete a antigas linhagens de reis e guerreiros, salões reais, relíquias, armas lendárias, grandes batalhas, heróis e monstros que personificam o próprio mal, transmite temas como a lealdade, o amor fraternal, a efemeridade da vida, o perigo do orgulho e da arrogância, e por fim o destino fatal da humanidade.
Grendel é a nêmese de Beowulf. Grendel, descendente de Caim e sua maldição, personifica o pecado (o da inveja, a princípio), pela qual Beowulf, por sua vez, confronta-se na medida em que personifica esse discurso moralizante, cercado do tema do orgulho, da moral e da mutabilidade da existência humana. Portanto, o poema é tanto uma elegia como um épico (triste, porém heróico); é não apenas um lamento pela morte do herói epônimo, mas também uma elegia nostálgica por uma forma de vida em declínio, e de nossos esforços contra as fatalidades.