Marili 26/12/2018Tão maravilhoso quanto angustianteBasta iniciar o mágico mês de dezembro para ser seduzida pelo espírito natalino. Meus dias são inundados por diversos entretenimentos deste tema, com uma atenção especial aos filmes. Em um desses natais dos meus acanhados vinte anos, me deparei com o clássico filme O Fantasma do Sr. Scrooge e, claramente, decidi assisti-lo — assim como qualquer outra pessoa que habite esse planetinha — em alguma noite de dezembro. O longa de animação é inspirado no conto mais famoso de Charles Dickens: Um Cântico de Natal, que acabou se tornando um dos maiores clássicos natalinos de todos os tempos — e que, diga-se de passagem, até hoje é utilizado como referência em várias histórias do mesmo tema.
O que a menina Marili de alguns anos atrás não esperava é que o famoso filme natalino a bofetearia com inúmeras reflexões e críticas sociais, sem dó nem piedade. Vale ressaltar que decidi assistir justamente para entrar no clima mágico natalino, de pura leveza e alegria, mas fui surpreendida com uma certa melancolia e alguns fantasmas aqui e ali. Melancolia digna de canções natalinas, pensando bem — tão dóceis quanto tristes. Ainda assim, fiquei encantada com o filme. Prometi a mim mesma que em algum natal de algum ano em alguma década leria o famoso conto de Dickens.
Eis que dezembro de 2018 bate na porta, me presenteando com a compilação de alguns contos do autor. Ressalto que a edição da Martin Claret ficou maravilhosa, com incontáveis ilustrações e detalhes dourados.
A impressão que tive de cada história apresentada não foi tão distante das sensações que afloraram ao assistir o filme. Deparei-me, na verdade, com páginas e páginas de reflexões, angústias e fantasmas — diria que um pouquinho de Halloween em pleno Natal. Ainda não li outro livro do autor, mas senti que Dickens escancara todas as mazelas e sofrimentos da humanidade de forma angustiante, para, ao final, trazer um certo alívio e cura. Ele tece isso não como uma forma desesperada de trazer um final feliz ao leitor, mas mostrar a importância de trilhar por nossas sombras e monstros. Isso fica muito evidente em "O Homem Possesso", em que o personagem perde suas lembranças de angústias e sofrimentos, mas percebe que o esquecimento de tais situações acaba por torná-lo um homem raivoso e, ao final, clama pela volta de suas memórias ruins — são elas que tornam ele uma pessoa melhor.
Talvez esta seja a grande união entre os principais contos do livro: a importância de abraçar as próprias dores e se reconstruir a partir delas. Caminhar ao lado de suas sombras e monstros e encará-los da forma que realmente são — nada mais que partes de ti. Dickens sabe que somos construídos e revestidos de fantasmas e monstruosidades. A grande dádiva está em reconhecê-los e aconchegá-los em algum cantinho confortável — afinal, são eles que nos ensinam a caminhar.
Não leia esperando apenas magia e leveza. Esteja pronto para esbarrar com todas as tuas sombras escancaradas, mas fique feliz pelo privilégio de poder enxergá-las (e por aprender junto com os personagens).
Finalizo com um trecho do conto "O Homem Possesso" que resume tudo muito bem:
"Quando vi que se comovia tanto com a gentileza e a atenção da pobre gente que mora no andar de baixo, senti que considerava aquela experiência uma espécie de compensação pela perda da saúde, e li em seu rosto, como se fosse num livro aberto, que, sem os problemas e a angústia, jamais teríamos consciência da metade do bem que há ao nosso redor."