Alexandre Kovacs / Mundo de K 17/05/2010
Salman Rushdie - Os filhos da meia-noite
Editora Companhia das Letras - 606 páginas - Publicação 2006 - Tradução de Donaldson M. Garschagen
Salman Rushdie, o premiado escritor britânico, nascido na Índia e ameaçado de morte por uma fatwa iraniana, decretada pelo aiatolá Khomeini em 1989 em decorrência do romance "Os versos satânicos", recebeu o título de Cavaleiro do Império Britânico por sua contribuição à literatura. Este fato desencadeou uma série de protestos no mundo muçulmano e ocasionou mais uma vez um antigo debate sobre a liberdade de expressão.
O romance "Os filhos da meia noite", publicado originalmente em 1980, ganhou no ano seguinte o conceituado prêmio de literatura em línga inglesa "Booker Prize". Em 1993, este mesmo romance foi premiado com o título "Booker of Bookers Prize", conferido ao melhor livro publicado nos primeiros vinte e cinco anos deste prêmio.
A história da Índia moderna, a partir de sua independência em 15 agosto de 1947, é a base do romance de Salman Rushdie que utiliza como fio condutor a troca de dois bebês, um de família hindu e outro de origem muçulmana, nascidos exatamente à meia-noite. Uma das crianças, Salim Sinai, o hindu pobre criado por engano numa rica família muçulmana, é o narrador do romance que, sempre em um clima de fantasia e humor, muitas vezes tragicômico, desfila uma série de histórias entrecruzadas apresentando as várias culturas e etnias que compõem a Índia. No entanto, este resumo de "Os filhos da meia noite " é tão insuficiente quanto dizer que "O novo testamento" trata da vida de Jesus.
A trajetória de Salim Sinai começa, para ser exato, na Caxemira durante a primavera de 1915 quando seu avô, o jovem e recém-diplomado dr. Aadam Aziz, bate com o nariz em um montículo de terra endurecida pela neve durante suas orações, é uma bela passagem e um exemplo representativo da prosa lírica de Salman Rushdie: "Três gotas de sangue saltaram de sua narina esquerda, endureceram instantaneamente no ar gelado e caíram, diante de seus olhos, transformadas em rubis, sobre o tapete de oração. Jogando o corpo para trás, até ficar com a cabeça novamente ereta, ele percebeu que as lágrimas que lhe haviam surgido nos olhos também tinham se solidificado; e naquele momento, enquanto desdenhosamente afastava diamantes dos cílios, ele decidiu que nunca mais voltaria a beijar a terra por nenhum deus ou homem. Essa resolução, criou um buraco dentro dele, um vazio numa câmara vital interna, deixando-o vulnerável às mulheres e à história."
O buraco que a fé deixou no interior de Aadam Aziz é preenchido posteriormente pelo amor à filha de um rico fazendeiro local. Ele é chamado para atender a uma consulta da jovem Nasim, com a condição de que o exame seja realizado através de um lençol com um pequeno círculo furado no centro, para que a pureza da jovem possa ser preservada. E assim, através de repetidas consultas, ao longo de três anos, e também de "uma colagem desconjuntada das partes inspecionadas aos pedaços", diga-se de passagem, cada vez mais detalhadas, ambos acabam se apaixonando e casando.
Esta é a origem da árvore genealógica que culminou, após duas gerações, no nascimento do protagonista trocado Salim Sinai (filho bastardo de um inglês). A união do casal Aziz irá gerar cinco crianças, as filhas Alia, Muntaz e Esmeralda e dois meninos Hanif e Mustafá. A pequena e negra Muntaz, o patinho feio da família, acabará em seu segundo casamento, roubando o namorado da irmã Alia e casando-se com Ahmed Sinai, passando a se chamar Amina Sinai. O casal terá dois filhos, sendo que o primeiro, nosso herói, será trocado na maternidade de Bombaim e posteriormente, sua irmã, a macaca de cobre que se tornará a famosa Jamila Cantora no Paquistão.
Salim Sinai descobre, aos dez anos, que tem o poder da telepatia, assim como, cada uma das 1001 crianças nascidas na Índia, neste mesmo dia, também possuem alguma aptidão extraordinária. Salim conseguirá, por algum tempo, conectar-se telepaticamente com todos os outros filhos da meia-noite. Uma dessas crianças, o terrível Shiva, o bebê trocado, virá reinvindicar seu lugar roubado involuntariamente por Salim Sinai.
No decorrer da trama, a história de Salim Sinai se confunde com vários eventos da Índia contemporânea, como a guerra indo-paquistanesa de1965 e os anos de ferro da primeira ministra Indira Ghandi de 1975 a 1977, como explica o próprio Salman Rushdie na Introdução deste romance: "(...) Então Salim, sempre um batalhador por significados, me sugeriu que toda a história indiana moderna aconteceu como aconteceu só por causa dele; que a história, a vida de sua gêmea-nação, era, de alguma forma, culpa toda dele. Com esta proposta pouco modesta, veio à luz o tom característico do romance, comicamente afirmativo (...)".
Finalmente, chego à conclusão de que é simplesmente impossível escrever um resumo deste romance, tantas são as histórias entrecruzadas, algumas realistas e outras fantásticas. Tantos personagens incrivelmente convincentes e bem delineados que, em última análise comprovam a habilidade do grande escritor que é Salman Rushdie, independente de todas as polêmicas políticas e religiosas que sempre provocou na mídia internacional. É um livro que já deixa saudades e aguarda certamente uma futura releitura.